Este texto é sobre o que vem sendo chamado de Primavera Indígena: a maior mobilização dos povos originários do Brasil nos últimos 30 anos – e o que a economia circular tem (ou precisa ter) a ver com isso!
Qual é o lugar dos povos originários na economia circular? Chile, 2018.
A Carla Tennenbaum, uma das fundadoras da Ideia Circular, já compartilhou aqui no blog sobre uma experiência dela no final de 2018, quando participou do Fórum de Economia Circular das Américas, em Santiago, no Chile, e sentiu vergonha da composição inicial da plenária de abertura de palestrantes “high level”: dois ingleses e um norteamericano (os três homens e brancos, se alguém tinha alguma dúvida). A Carla já contou, inclusive, como se “convidou” para participar dessa plenária e trazer um pouco da perspectiva latino-americana, e do circular como feminino.
Mas uma outra coisa que chamou a atenção, e ela menciona brevemente no texto, foi a ausência nas discussões de qualquer representação, ou mesmo menção, aos povos originários das Américas, e seu lugar nesse futuro circular que queremos construir no continente.
Naquele mês de novembro em que se realizava o Fórum, o assassinato do líder indígena Camilo Catrillanca, de 24 anos, em uma operação policial, tinha levado os mapuches, uma das principais e mais resistentes etnias originárias chilenas, mais uma vez a protestar e se envolver em um confronto longo e violento com a polícia nas ruas de Santiago.
Ela conta: “Era a primeira vez que eu visitava o Chile, e fiquei hospedada muito próximo da avenida onde se concentravam os protestos – sempre interditada, com forças militares armadas, pessoas correndo, pedras e bombas de fumaça sendo atiradas. Esse conflito saltou aos meus olhos de estrangeira – mas não foi mencionado em nenhum momento durante aquele encontro sobre a economia circular no Chile e nas Américas”.
Primavera Indígena e economia circular – Brasil, 2021.
Corta para o Brasil, setembro de 2021.
Centenas de etnias de todo o país se articulam e unem forças no que vêm chamando de Primavera Indígena, considerada a maior mobilização do tipo desde 1988. Ou, seria mais certo dizer, o ponto agudo de uma resistência que nunca deixou de existir nos últimos 521 anos.
Desde 22 de agosto, milhares de lideranças indígenas se concentram no acampamento Luta pela Vida, em Brasília, protestando e acompanhando um julgamento histórico do STF, que vai impactar toda e qualquer demarcação futura de terras indígenas a partir da aceitação ou recusa da tese do Marco Temporal (se você não sabe o que é, segura que a gente já explica!).
Era de se esperar que esse movimento fosse manchete. Mas, surpreendentemente ou não, poucas pessoas têm ideia de que isso esteja acontecendo.
E nos fóruns e encontros brasileiros sobre economia circular a gente também não costuma ouvir falar sobre os povos originários (e muito menos dos povos originários).
Os exemplos e referências são quase sempre europeus, já que países da Europa são vistos como mais avançados nesse caminho e, portanto, como doadores de saber.
E os povos indígenas ficam à margem dessa discussão, porque ela toma como referência um modelo eurocêntrico – e colonialista – de desenvolvimento. (Importante lembrar, como vamos ver, que é justamente esse modelo o responsável pela destruição e desequilíbrio ambiental que agora precisamos enfrentar!)
Nossa intenção, desde a criação da Ideia Circular, é fazer essa discussão sobre economia circular no Brasil a partir do nosso contexto e das realidades locais. Por isso a gente não poderia, neste momento histórico, deixar de falar sobre a Primavera Indígena.
Neste post, então, você vai ver um pouco do contexto histórico e político dessa mobilização, e o que a economia circular tem (ou precisa ter) a ver com isso.
Nada mais linear que o colonialismo
A economia linear de extração-produção-descarte, hoje tão espalhada e arraigada por todo o mundo, e a que a economia circular se propõe a superar, é muitas vezes identificada com a revolução industrial.
Isso porque a partir dela se instaura um modelo de produção que intensifica a extração de recursos e a produção em massa, e a dependência do uso de combustíveis fósseis e trabalho humano em condições precárias.
Mas a linearidade tem raízes mais antigas…
Vale lembrar que a revolução industrial não teria acontecido sem a acumulação de recursos da época do colonialismo, com a conquistas de territórios explorados em benefício das metrópoles européias.
E o que pode ser mais linear do que o colonialismo? Um sistema em que uma região “metrópole” extrai todas as riquezas que pode encontrar em um território ocupado como “colônia”. Sem nenhuma preocupação em regenerar essas riquezas localmente. Exterminando e escravizando a população nativa no processo – ou ainda importando populações escravizadas de outras regiões também exploradas.
No Brasil, foram inúmeros fluxos de exploração e exportação de recursos: do pau-brasil ao ouro, ao açúcar, ao café, à soja, à carne, etc… E o modelo linear extrativista, monocultor e exportador continua sendo considerado a base da nossa economia – e é justamente em nome dele que se propõem projetos de lei como o PL 490 e a tese do marco temporal, que avançam sobre os territórios indígenas.
Esse modelo do passado segue sendo privilegiado, em detrimento de outras visões de futuro (como a economia circular), muito mais promissoras em conjugar a prosperidade econômica com o bem-estar humano e a regeneração dos sistemas naturais.
Mas isso precisa mudar – e já está mudando.
O amanhã da Amazônia é agora – e ele afeta o mundo todo
O relatório sobre as condições climáticas globais publicado em agosto pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) apontou que os últimos cinco anos foram os mais quentes na Terra desde que começaram as medições, em 1850, com um aumento médio de mais de 1ºC nas temperaturas globais. Isso significa que, sem uma mudança drástica nas emissões de gases do efeito estufa, chegaremos ainda neste século a um aquecimento entre 1,5º e 2ºC, com consequências catastróficas para a vida na Terra.
Segundo Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e membro do IPCC, aqui no Brasil, onde a floresta amazônica vem sendo devastada no maior ritmo dos últimos dez anos, os impactos do aquecimento global devem ser ainda mais intensos do que em boa parte do mundo. Hoje, a Amazônia já não tem capacidade de absorver o gás carbônico emitido pelas queimadas em seu território. E há ainda um ponto de inflexão no desmatamento, quando não vai mais ser possível que a floresta desmatada sobreviva a esse novo clima.
“O Brasil, por sua localização continental, com certeza vai sofrer um aquecimento maior do que a média global e uma redução na precipitação mais importante do que em outras regiões do planeta”. Paulo Artacho – USP
Além dos efeitos das mudanças climáticas globais, que geram períodos secos mais longos e chuvas mais concentradas, o desmatamento das florestas está diretamente relacionado com a crise hídrica. Temos visto a perda da água de superfície em todo o território nacional, o que tem gerado crises hídricas cada vez mais graves. O desmatamento reduz áreas de evapotranspiração (processo de perda de água do solo por evaporação e das plantas por transpiração), que formam o que chamamos “rios voadores” e que são responsáveis por ⅓ das chuvas em todo o território do Brasil.
E, junto da crise hídrica, com secas cada vez mais severas, o aquecimento pode gerar efeitos como inundações, ondas de calor e até aparecimento mais frequente de pandemias como a do coronavírus.
E isso gera uma série de efeitos econômicos em cadeia, como escassez energética, aumento do custo da energia, inflação… Ou seja, é ruim para os negócios também. A produtividade agrícola é a primeira a sofrer pela redução das chuvas – além da imagem do país, que vem sendo prejudicada por não cumprir com seus compromissos internacionais.
Desmatamento é coisa do passado, assim como a economia linear
Nos últimos 36 anos, 82 milhões de hectares de vegetação nativa foram desmatados no Brasil (isso equivale a uma área de 20 (!) estados do Rio de Janeiro). Dessa área, apenas 1,6% são terras indígenas, e menos de 1% são terras demarcadas. Isso significa que, além de ser um direito constitucional, demarcar terras indígenas é a forma mais efetiva de conservar a floresta.
Em 2019, quando o mundo chorava os incêndios recordes na Amazônia, nós publicamos um artigo sobre como a ideia de desmatar como única forma de levar “desenvolvimento” para a região não faz mais sentido. Muito pelo contrário, isso é uma ideia do passado. O desmatamento das nossas florestas está ligado a uma economia que, além de extrativista e linear, é ilegal.
Nesses tempos difíceis de desmonte em direitos humanos e ambientais, temos que resistir e trabalhar por essa mudança de paradigma. Porque, sem dúvida, a chave para o nosso futuro passa pela valorização dessa enorme diversidade biológica, social e cultural.
Rumo ao futuro
A vocação do Brasil é ser uma potência ambiental. Muito mais promissor seria promover o desenvolvimento científico e tecnológico para agregação de valor desde a base de produção para beneficiar as populações locais, e a partir dos recursos abundantes e renováveis da própria floresta.
Como já dissemos em 2019, e muitos outros antes de nós, a floresta em pé vale muito mais do que qualquer minério que esteja embaixo dela, ou lavoura que seja plantada no seu lugar.
Podemos basear o desenvolvimento da região na bioindustrialização, com a geração de conhecimento e empreendedorismo que potencializem a biodiversidade. Ou ainda na agricultura regenerativa, mineração sustentável e extrativismo dos insumos e medicinas da floresta, que a ciência ocidental apenas começou a descobrir.
Para todas essas atividades, os conhecimentos ancestrais dos povos indígenas têm um valor imensurável, ancorado em milhares de anos de tradição e contato sagrado com seus territórios.
E aqui voltamos à relevância da Primavera Indígena, dos povos originários e sua relação com a economia circular!
Afinal, como vamos ver a seguir, eles têm muito a nos ensinar – tanto sobre resistência, quanto sobre uma visão de mundo que permite conciliar os sistemas sociais e naturais em toda a sua abundância e circularidade.
521 anos de resistência
Segundo o último estudo do IBGE, a população indígena no Brasil é formada por 305 povos, falantes de 274 línguas, totalizando aproximadamente 900 mil pessoas.
Esse é um dos maiores índices de diversidade sociocultural do planeta!
Mas em vez de valorizar esse tesouro, e aprender com esses povos, que têm uma relação muito mais benéfica e circular com a terra, eles ainda precisam lutar pelas condições mínimas de sobrevivência do seu modo de vida.
A resistência indígena contra a invasão dos seus territórios e pela continuidade das suas tradições é uma luta constante, e constantemente invisibilizada.
Mesmo agora, num momento de acirramento, a Primavera Indígena está longe das manchetes.
Importante entender que essa luta não é partidária – é só lembrar os protestos intensos, durante o governo Dilma, contra a construção de Belo Monte, tão destrutiva para o tecido ambiental e social da região.
A rigor, todos os governos até agora vêm seguindo o mesmo modelo desenvolvimentista, e muitos dos seus projetos afetaram negativamente os povos originários. Mas, desde o fim da ditadura militar e da Constituição de 1988, pelo menos havia a garantia dos direitos dos povos indígenas aos seus territórios e modos de vida – conquistados também após muita luta e mobilização para fazerem suas vozes ouvidas, em intervenções inesquecíveis como a de Ailton Krenak no Congresso Nacional em 1987, durante a Assembléia Constituinte.
O artigo 231 da Constituição de 1988 diz que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Desde então, grupos econômicos interessados na exploração dos territórios indígenas já fizeram várias tentativas de neutralizar esses direitos.
Cada vez pior
Nos últimos anos, contudo, tanto as políticas anti-indígenas quanto a violência contra essas populações vêm se intensificando. Além das agressões e invasões cotidianas, houve um aumento expressivo no assassinato de lideranças indígenas, ajudando a colocar o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial de países mais perigosos para defensores ambientais.
Esse retrocesso não é nenhuma surpresa, especialmente desde que temos um presidente declaradamente aliado aos interesses de ruralistas, garimpeiros e mineradoras, e eleito com a promessa explícita de não demarcar um centímetro de novos territórios indígenas.
Além do desmonte das estruturas de proteção e fiscalização ambiental, ao longo da pandemia da Covid-19, o governo federal deixou de tomar as medidas necessárias para a proteção dos povos indígenas. E, quando finalmente se aprovou um Plano Emergencial para esses povos, foi com vetos do presidente aos dispositivos que previam necessidades básicas como, por exemplo, o acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos, materiais informativos e acesso à internet.
A Primavera Indígena surge como resposta direta a essas violências. E, mais especificamente, para combater o avanço do Projeto de Lei 490 e influenciar o julgamento do STF que discute a tese do Marco Temporal, o qual vai direcionar toda a demarcação de territórios indígenas daqui para a frente.
Abaixo a gente resume um pouco desse contexto, com links caso você queira se aprofundar.
#MarcoTemporalNão
O Marco Temporal é uma tese defendida por ruralistas e outros setores interessados na exploração das terras indígenas, e que busca restringir o direito dos povos originários à demarcação dos seus territórios. Segundo essa tese, um povo indígena só teria direito à terra caso comprove a sua presença nela em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal, que garantiu o chamado “direito originário” aos seus territórios ancestrais.
Isso significa que, de acordo com o Marco Temporal, povos que foram removidos ou expulsos dos seus territórios antes dessa data perdem o direito às terras que ocupam há séculos. A tese, caso aceita, pode afetar mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão em aberto, e expropriar alguns dos territórios indígenas mais preservados do Brasil.
PL 490
A adoção da tese do Marco Temporal é uma das principais e mais polêmicas propostas do PL 490, projeto de lei protocolado pelo então deputado federal Homero Pereira (PSD-MT), em 2007, e que desde então foi arquivado e desarquivado 3 vezes, recebendo 13 novos apensos.
O texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros.
Atualmente, para definir uma Terra Indígena (TI), pesquisadores da Funai realizam estudos e propõem a demarcação do espaço entendido como pertencente a determinado povo originário. Após o processo, o Presidente da República pode sancionar ou não a criação da TI.
Caso o PL 490 seja aprovado, esse processo de reconhecimento histórico e antropológico de territórios indígenas acaba. Dessa forma, a instituição de novas Terras Indígenas (TI) será inviabilizada, ficando restrita aos povos originários que consigam provar que estavam em posse dos seus territórios em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada.
O julgamento do futuro das terras indígenas no Brasil
Os povos indígenas já estavam em intensa campanha de mobilização e protesto contra o PL 490 em junho deste ano, quando ele foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara (CCJ). Mas, neste momento, a pauta central da Primavera Indígena é o julgamento em curso no STF, que também está relacionado à tese do Marco Temporal. Este vem sendo considerado pelo movimento como o processo mais importante do século sobre a vida dos povos indígenas.
O julgamento avalia a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Para isso, a Corte deve analisar a tese do Marco Temporal, considerada de ‘repercussão geral’. Ou seja, o resultado do julgamento incidirá sobre as futuras demarcações de terras no país.
Primavera indígena: Luta pela Vida
Desde o dia 22 de agosto, mais de 6 mil indígenas de 172 povos das diversas regiões do Brasil passaram pelo acampamento Luta pela Vida, em Brasília, para reivindicar seus direitos e acompanhar o julgamento do STF.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
“essa é a maior mobilização na história dos povos originários, na Capital Federal, e reforça nosso grito: Nossa história não começa em 1988!”
Um novo adiamento da votação, em 28 de agosto, forçou parte das lideranças a retornar a seus territórios. Ainda assim, mais de mil representantes se mantiveram acampados, aos quais mais de 5.000 mulheres de todo o Brasil se somaram, entre 7 e 11 de setembro, para a II Marcha das Mulheres Indígenas (a primeira aconteceu em 2019).
Mulheres originárias: Reflorestando mentes para curar a terra
A Marcha aconteceu no dia 10 de setembro, organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), que reúne mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil, com saberes, tradições e lutas que se somam e convergem.
“A ANMIGA é composta pelas mulheres indígenas, originárias da Terra. Sabemos que a raiz do Brasil vem de nós, do útero da Terra e de nossas ancestrais. A Mãe do Brasil é Indígena. O Brasil nunca existiu e nunca existirá sem nós.” – ANMIGA (quem somos)
Logo após a marcha, as mulheres originárias lançam o movimento Reflorestarmentes, inicialmente como manifesto e também como projeto generoso de compartilhamento dos seus saberes:
“Trata-se de um grande chamamento que fazemos à humanidade, na tentativa de proporcionar a todos os povos do mundo uma nova forma possível de nos relacionarmos com a Mãe Terra, e também entre nós, seres que nela vivemos”.
“A Plataforma Reflorestarmentes organiza os conhecimentos e tecnologias ancestrais desenvolvidos e preservados por nós, mulheres indígenas, e os coloca à disposição de todas e todos que compartilham conosco a preocupação com nossas vidas, com nossa terra, com nosso futuro.” – manifesto Reflorestarmentes
Resultados do julgamento até 15/09: Dois votos e pedido de vista
O ministro do STF Edson Fachin, relator da ação, foi o primeiro a se manifestar no julgamento, e votou contra a tese que estabelece o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas.
“Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente”
(veja outros destaques do voto de Fachin aqui)
O ministro Kássio Nuno Marques foi o próximo a votar, e abriu divergência em relação à posição do relator, se posicionando a favor da tese do Marco Temporal.
“Os argumentos do Nunes Marques não inovaram em nada, foi um voto que não nos surpreendeu. Ele trouxe basicamente os argumentos que os ruralistas defendem. Ele desconsidera o indigenato, traz o indigenato como um instituto defasado, que traz insegurança jurídica, e defende a tese do marco temporal”, avalia a advogada Samara Pataxó, da assessoria jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Na sequência, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista, suspendendo o julgamento até que ele decida emitir seu voto e processo seja retomado.
Teoricamente, o regimento do STF estabelece um prazo máximo de 20 dias para isso, mas não há sanções para o descumprimento. Ou seja, na prática, o julgamento fica suspenso por tempo indeterminado. Caso a retomada demore, abre-se caminho para a aprovação do PL 490 no Congresso, inserindo a tese do Marco Temporal na legislação.
Esse novo adiamento já era esperado pelas lideranças indígenas, inclusive como estratégia para contornar a sua resistência e impedir que um resultado desfavorável ao Marco Temporal invalide a PL 490 antes da sua aprovação.
Mas a luta continua!
A Primavera Indígena veio para ficar.
Ideias para adiar o fim do mundo
Projetos de leis como o PL 490 e os argumentos favoráveis à tese do Marco Temporal ecoam o pensamento colonialista, que vê o indígena como “incivilizado”, e um entrave ao desenvolvimento. O discurso é de “incluir” e incorporar os povos ao modelo de sociedade ocidental, visto como mais avançado.
Esse olhar ignora a riqueza intelectual e filosófica dos povos indígenas, que têm muito a ensinar na busca por novas formas de bem-viver que não impliquem a destruição dos sistemas naturais que nos sustentam.
Como lembra Ailton Krenak, e comprovam tantos estudos, a ameaça que os povos indígenas sofrem não diz respeito apenas à sua sobrevivência, mas à de toda a população do planeta. Nas suas palavras:
“Todos precisam despertar. Se, durante um tempo, éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a terra não suportar a nossa demanda.”
Ailton, aliás, foi eleito intelectual do ano em 2020, após a grande repercussão de seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, publicado em 2019 pela Companhia das Letras. Na página 31, ele compartilha a sua preocupação com os povos não-indígenas: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa”.
Economia circular – precisamos aprender com quem sabe
Como a gente já comentou no começo do texto, e temos defendido ao longo da trajetória pioneira da Ideia Circular em discutir os princípios circulares no contexto brasileiro. Ainda que possamos nos inspirar nos avanços e experiências européias para “desinventar” a economia linear, é preciso desenhar uma economia circular tropicalizada, na medida das nossas realidades locais, regionais e sociais.
E, para isso, é imprescindível aprender com os povos afro-ameríndios brasileiros, que sempre tiveram – e ainda têm – uma relação muito mais circular com a terra.
Uma relação que não é de posse, mas de cuidado e usufruto.
E que não enxerga os sistemas naturais como recursos, mas como ancestrais e encantados.
São práticas e conhecimentos que podem sustentar uma visão transformadora da sociedade humana, e extremamente relevantes nessa grande transição para a economia circular.
Citando mais uma vez Ailton Krenak:
“Estamos agora em posição de oferecer provisoriamente três características que uma razão biopolítica teria de preencher: pôr a racionalidade a serviço da vida; a técnica a serviço das necessidades ecológicas, ecológicas entendidas não só como preservação da natureza, mas como desenvolvimento e reprodução de relações ‘sociais’, como diz Viveiros de Castro, entre humanos e não humanos; e a acumulação de riqueza a serviço do comum”.
O que você pode fazer
- Apoiar finaceiramente a Primavera Indígena com qualquer quantia
- Somar sua assinatura à carta aberta aos ministros do STF contra o Marco Temporal (até 24/08/2021, foram mais de 160.000 assinaturas)
- Escrever para o Ministro Alexandre de Moraes solicitando a retomada do processo: gabmoraes@stf.jus.br
- Seguir a Apib, Anmiga, Mídia índia: acompanhar e compartilhar os conteúdos produzidos pelos próprios indígenas com suas perspectivas e necessidades.
- Se você é produtor ou comerciante, pode comprar insumos e produtos de iniciativas sérias e transparentes que geram renda para os povos originários, como a rede Origens Brasil.
- Se você trabalha ou quer trabalhar com economia circular no Brasil, pode seguir se questionando sobre as singularidades dos nossos contextos regionais e sociais, e como eles podem contribuir para a construção de um futuro circular, abundante, diverso e justo para todas e todos.
- Pesquisar sobre a visão de mundo dos povos indígenas (de preferência com autores indígenas!) e se dedicar ao trabalho (constante) de descolonizar nossas ideias.
Outras ideias? Conta pra gente pelo contato@ideiacircular.com!