A rede Pão de Açúcar compartilhou, recentemente, um post nas redes sociais mencionando o conceito de economia circular, a partir de um programa de reciclagem de cápsulas de café, de uma maneira que, a nosso ver, é bastante equivocada. O texto usa como exemplo de economia circular uma campanha, desenvolvida em parceria com a Nescafé Dolce Gusto, de coleta das cápsulas usadas para que sejam transformadas em outros produtos, como um porta cápsulas, ou tubetes para o plantio de sementes de café.
Neste post vamos contar para vocês alguns erros que encontramos no anúncio do Pão de Açúcar e o que pensamos sobre cada um deles:
1. Bem intencionada, mas ainda linear
A campanha de reutilização das cápsulas para o desenvolvimento de outros produtos pode parecer uma boa ideia. Isso porque a reciclagem de uma cápsula – mistura de diferentes tipos de plástico, colas, resinas, papel e borra de café – é praticamente inviável, e seu uso cada vez maior tem sobrecarregado os aterros sanitários no Brasil. Nesse sentido surgem campanhas de “descarte correto” desses produtos, como essa do Pão de Açúcar e da Nescafé, mas o equívoco acontece a partir do momento em que as empresas não colocam a pergunta principal: “e depois?”. O que irá acontecer com os porta cápsulas de café quando não forem mais úteis? O que irá acontecer com os tubetes quando as mudas forem transplantadas?
Ao não dar uma resposta para essas perguntas e não pensar em como de fato “fechar o ciclo”, a solução se mostra incompleta, apenas postergando o destino dos materiais: o aterro sanitário ou lixão. O pensamento continua dentro do paradigma linear de extração, produção e descarte. E isso não é economia circular.
2. Material de pior qualidade
A cápsula é composta por diferentes tipos de plásticos, colas, papel e aditivos, o que faz com que seja muito difícil dissociar um material do outro. Por isso a reciclagem de uma cápsula como essa passa por processos mecânicos, nos quais todos os materiais são moídos e reprocessados, sem serem separados uns dos outros. Como resultado, a transformação desse resíduo gera um material híbrido, que por sua vez é utilizado para fabricar outros produtos com especificações menos exigentes. Não necessariamente o novo material formado é reciclável com a mesma qualidade, e não existe um processo de logística reversa ou “descarte correto” para esses novos produtos.
Isso configura um caso clássico de downcycle, ou subciclagem, e esse certamente não é o caminho para uma economia efetivamente circular. Pelo contrário, seriam necessários processos de upcycle, ou superciclagem, que geram materiais de qualidade igual ou superior aos anteriores, mantendo seu valor em circulação por vários ciclos de uso.
3. “Economia circular é”
Se a intenção era ampliar a divulgação da ideia de economia circular e sua compreensão pelo grande público, o anúncio começa mal. Isso porque, ainda que não exista uma definição única do que seja economia circular, seus significados vão bem além de “quando usamos resíduos para fazer novos produtos e tudo é reaproveitado como parte de um novo ciclo”, como afirma a campanha do Pão de Açúcar. Nós entendemos que a circularidade da economia acontece quando os resíduos são pensados desde o início para se tornarem nutrientes em novos processos – e produtos ou materiais podem ser reparados, reutilizados, atualizados ou re-inseridos em novos ciclos com mesma qualidade ou superior, ao invés de serem jogados fora.
Nesse sentido, a economia circular é uma meta que envolve uma transformação profunda dos nossos modelos produtivos, e não apenas uma ou outra ação pontual de reaproveitamento de resíduos. Para isso, materiais circulam no máximo de seu valor em sistemas industriais integrados, restaurativos e regenerativos. (Leia mais sobre a nossa definição de economia circular aqui).
4. Desastre de design
Uma economia circular verdadeira, como acreditamos, pede design circular inteligente. As cápsulas de café Dolce Gusto são um desastre de design, do ponto de vista da circularidade. Isso porque trata-se de uma embalagem que mistura vários materiais do ciclo técnico, que poderiam continuar a ser úteis para a indústria, para abrigar uma dose de borra de café, um nutriente biológico.
Fica muito difícil separar esses materiais depois do uso: nem o café volta para o solo, nem o plástico e resinas – materiais de alto valor – voltam para a indústria.
Ao invés desta solução, que oferece uma destinação parcial e insuficiente a esse resíduo, seria muito mais efetivo investir em um redesign das próprias cápsulas, de forma que os materiais possam retornar com o máximo de seu valor – como nutrientes técnicos ou biológicos – em sistemas industriais inteligentes e realmente circulares.
5. Muita atitude para pouca iniciativa
A imagem da campanha nas redes sociais traz o imperativo “recicle suas cápsulas” e o slogan “nossas iniciativas – suas atitudes”. Mas atualmente fazem parte da campanha apenas 19 lojas do Pão de Açúcar em todo o Brasil – das mais de 200 unidades da marca. Nos comentários da matéria, consumidores de várias cidades perguntam: “quando vai ter em Fortaleza?”,”Tem em Jundiaí?”, “E em Ribeirão Preto?”. Ou seja, muitas pessoas se dispõem a tomar a atitude de encaminhar suas cápsulas para a ‘reciclagem’, mas para isso a iniciativa precisaria ser estendida para muito mais unidades.
Nesse sentido, outro erro da campanha, importante de ser ressaltado, é afirmar ser necessário descartar “corretamente” as cápsulas de café, quando essa possibilidade está disponível somente para poucos consumidores, em poucas localidades.
E ainda que os postos de coleta fossem expandidos, o destino proposto para as cápsulas dificilmente daria conta do volume desse descarte. Segundo o site Mother Jones, se colocarmos, uma ao lado da outra, todas as cápsulas de café produzidas em 2013 somente pela marca Keurig (1), seria possível formar uma linha longa o suficiente para dar a volta na Terra mais de dez vezes.
Com esse volume de produção, imagine quantos porta cápsulas seriam necessários para reutilizar todo esse material! A campanha não explicita quantas cápsulas de café são usadas por unidade. Mas, segundo o site da marca, 15% do produto é composto por resíduos das cápsulas Dolce Gusto pós-consumo. Ou seja: pensando no volume diário de consumo e descarte em uma casa, a conta simplesmente não fecha.
6. Naturalização do descarte de cápsulas de café
Ao dizer que a praticidade das cápsulas gera resíduos e que agora existe uma solução para isso, a campanha também naturaliza o descarte desses objetos, não questionando a lógica de produção que o envolve e nem propondo respostas de fato efetivas e de reintegração aos ciclos biológicos ou técnicos.
Lição de Casa:
Todos têm a sua parte a fazer. Como a campanha sugere, cabe à pessoa que opta por consumir café em cápsulas se responsabilizar pelo “descarte correto”, ou retorno à indústria, dos resíduos que gera. Mas, para que isso seja possível, é necessário oferecer alternativas viáveis e efetivas de destinação e logística reversa. E isso é responsabilidade de quem fabrica os produtos (neste caso, a Nescafé) e de quem os vende (neste caso, o Pão de Açúcar).
Cabe à Nescafé repensar o design das cápsulas de café, desde o começo. Se é um produto descartável, de uso muito rápido, e que vai comportar um material biológico, faz bastante sentido ele ser compostável. Se vai ser reciclado, que seja com qualidade, para continuar tendo valor como nutriente técnico, e com um sistema mais efetivo de retorno à indústria do que propõe a campanha em questão.
Além disso, frente a esses equívocos, fica claro que o Pão de Açúcar e a Nescafé precisam compreender com maior profundidade o conceito e prática da economia circular e se responsabilizar pelo que comunicam em suas redes sociais. Ainda que possa ser uma ação publicitária bem-intencionada, corre o risco de confundir quem está lendo, e descaracterizar esse movimento. É importante que a economia circular caia “na boca do povo” – e é para isso que nós trabalhamos. Mas é essencial que essa divulgação se dê com clareza de critérios, para que possa sinalizar a transformação profunda de que nossos processos produtivos necessitam para se tornarem verdadeiramente circulares e regenerativos.
Para quem se interessa pelo tema, recomendamos algumas reportagens veiculadas na imprensa nacional e internacional:
- https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2016/06/1784370-a-espera-de-reciclagem-capsulas-de-cafe-sobrecarregam-aterros-sanitarios.shtml
- https://www.insectashoes.com/blog/por-que-voce-deve-pensar-duas-vezes-antes-de-tomar-cafe-de-capsulas-descartaveis/
- http://www.abc.net.au/news/2016-08-24/former-nespresso-boss-warns-coffee-pods-are-killing-environment/7781810
- https://www.theguardian.com/environment/2017/apr/29/recycle-nespresso-coffee-pods-london
- https://www.independent.co.uk/news/world/europe/hamburg-ban-germany-disposable-coffee-pods-packaging-a6887216.html
- https://www.huffingtonpost.ca/2016/03/01/coffee-pod-ban-hamburg-germany_n_9360452.html
- Essa conta se refere somente aos K-Cups, produzidos pela empresa norteamericana Keurig, e se somarmos as outras marcas de cápsulas, essa conta daria ainda um resultado muito maior.