Sabemos que o tema de políticas públicas em economia circular é fundamental na transição para um futuro circular. E é um assunto que sempre surge nas discussões, e traz uma série de questões: que tipo de políticas ou instrumentos podem estimular a economia circular? O que o governo pode fazer? Funciona proibir? Qual é o papel da sociedade civil, e como ela pode influenciar a tomada de decisões? Como a Política Nacional de Resíduos Sólidos tem ajudado nesse desafio?
Para conversar sobre esses e outros assuntos, entrevistamos o Flávio de Miranda Ribeiro, gerente do departamento de políticas públicas da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB). Ele também é pesquisador e professor na área de economia circular e traz a sua visão de como as políticas públicas têm influenciado na transição para a economia circular.
1) Como você vê o papel das políticas públicas na transição para a economia circular?
Olha, na minha opinião as políticas públicas são fundamentais na transição para a economia circular. Existe um ponto até onde inovações disruptivas podem surgir espontaneamente. Mas tanto para elas serem mais frequentes quanto para dar o scale up delas, ou seja, transformar uma ideia, um projeto piloto em algo mais amplo, é preciso o suporte de políticas públicas.
Exemplos disso são políticas públicas do tipo tributárias, do tipo estímulo à inovação, e outras que eventualmente até serão um pouco mais duras, mas que levem as empresas a investirem em produtos mais ecologicamente adequados. E acredito que a gente está num caminho onde isso vai ser cada vez mais presente na sociedade.
2) E como as diferentes entidades – municipal, estadual e federal – interferem nessas políticas?
Eu acho que a divisão pelos três níveis de governo é muito importante uma vez que a gente está num país enorme e muito diverso. É muita ilusão achar que a gente vai ter uma regra única que funcione em todos os estados da federação.
Nos estados ou até em regiões juntando alguns estados, você pode ter marcos detalhando esse marco federal que deem já diretrizes um pouco mais firmes. No caso da logística reversa, por exemplo, você poderia ter metas estaduais para sistemas nacionais. E no município existe uma questão muito importante, que é o contato com o cidadão, o contato com a população que está no seu dia a dia ligada ao município, não ao estado ou país. As coisas acontecem nas cidades. Então é importante que as cidades tenham todo um arcabouço não só regulatório do ponto de vista de leis, mas também de estímulos, de ações administrativas que tragam, por exemplo, o empreendedorismo.
A gente conhece vários casos de municípios, por exemplo, que têm tributação diferenciada para alguns tipos de comércio. Um brechó ou uma oficina ou algo que possa incorporar princípios de economia circular.
Mas isso tem de ser uma questão negociada dentro do município, que é quem tem instrumentos e grau de controles para esses número enorme de pequenos negócios que vão surgindo. O estado e a nação nunca vão dar esse tipo de cobertura. Mas, por outro lado, as grandes corporações, as grandes diretrizes, os prazos, as regras gerais dos sistemas têm de vir da nação ou dos estados, então é muito importante a integração desses três níveis de governo, sem dúvida.
3) E a Política Nacional de Resíduos Sólidos, como tem ajudado nessa transição para a economia circular?
O que eu acho é que existe um arcabouço legal no Brasil dos mais modernos do mundo. A nossa política é muito arrojada, ela tem questões que a europeia nem sequer sonha como por exemplo a inclusão social de catadores. São ações que estão muito à frente do nosso tempo.
A questão é se a gente consegue fazer um contrato social onde as pessoas físicas e jurídicas, ou seja, os indivíduos e as empresas se disponham ao que é necessário para isso acontecer. E aí eu estou falando inclusive de princípio do poluidor pagador, do consumidor pagador. Eu quero dizer que a conta das externalidades que a gente está querendo internalizar inclusive para a economia circular vai ter que ser paga. E as pessoas têm de estar dispostas a isso.
A gente vai ter que criar outras formas. Por exemplo taxas e mudanças tributárias. Acho que enquanto a economia não tiver instrumentos para que isso aconteça vai ser muito difícil avançar. A gente tem exemplos muito bons na Europa nesse sentido. A taxa de aterro fez aumentar a reciclagem.
Você precisa de um instrumento econômico para manter o estímulo à reciclagem e à coleta seletiva, que são ações que têm o seu custo, que têm o seu ônus. A política como um todo, ela oferece instrumentos para isso. A questão é se a gente vai ter condições administrativas de colocá-las em prática. Os detalhes das políticas públicas são o que dá muito trabalho, e as pessoas nem sempre enxergam que é onde falta a sociedade civil organizada, principalmente organizações não governamentais, universidades, aqueles que têm condições técnicas de oferecer apoio, de oferecer subsídio para que a política continue avançando, caminhando e progredindo como tem que ser.
4) Você falou do lado do poluidor pagador, dos deveres das empresas. E no lado positivo, como a gente poderia estimular, dar subsídios. Hoje em dia a gente tem muitas indústrias super poluidoras que têm subsídios no Brasil, e por outro lado falta esse estímulo à inovação, esse reconhecimento até tributário. Se você puder falar um pouco se isso já existe em algum lugar do Brasil.
Tem duas questões aí. Você fala de estímulo, mas tem antes do estímulo, vamos falar do próprio exemplo que você deu, que são tirar incentivos perversos.
Então hoje, por exemplo, você tem subsídios a uma série de materiais, combustíveis que vão na contramão da questão ambiental. Eu acho que antes de oferecer os benefícios de fato, tinha de revisar os malefícios. Tinha que tirar um pouco esse auxílio que a gente dá para aquilo que a gente não quer mais.
Inclusive, algumas revisões tributárias são feitas com critérios do tipo ‘Quantos empregos vai gerar? Qual a arrecadação futura que vai trazer?’ Poderia se incluir também aspectos ambientais. Qual o benefício ambiental que isso trará? Na hora em que você vai discutir planos de mobilidade por exemplo, isso seria uma questão muito importante. Para fortalecer o transporte coletivo, o cicloativismo e outras questões que estão ligadas à própria gestão do espaço urbano.
Já no âmbito do estímulo de fato, existe uma necessidade de revisar a carga tributária principalmente via ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Serviços) e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Acho que existem algumas questões delicadas, a gente aqui em São Paulo tem um pleito muito discutido em relação a isso. Hoje quando você tem um material virgem sendo comercializado para fazer um produto e você vai pagar o imposto do produto, você desconta o que a cadeia já pagou de imposto. Cada elo paga um tanto, mas desconta um tanto que já foi pago pelo elo anterior.
“Hoje acaba saindo mais caro usar um material reciclado do que um material virgem. E esse é um incentivo muito perverso”
Mas, por exemplo, quando você compra um material reciclado para fazer esse mesmo produto, não existe esse desconto. Então, tributariamente, hoje acaba saindo mais caro usar um material reciclado do que um material virgem, e esse é um incentivo muito perverso.
Hoje a nossa discussão com a (secretaria da) Fazenda é muito nesse sentido. É onde a gente está hoje aqui em São Paulo, mas saibam que existe um pleito muito grande no sentido de facilitar, simplificar e baratear uso de material reciclado em produtos.
Agora, pensando em economia circular, dá para ir muito além. Já falando de estímulos a novos negócios, redução de desperdício de alimentos. de questões que têm possibilidades de instrumentos econômicos muito amplas. Por exemplo, se os municípios conseguissem aplicar as leis de grande gerador e cobrar que o gerador de médias e grandes quantidades pagasse sempre pela destinação, certamente haveria interesse maior por sistemas de tratamento biológico para a fração orgânica do nosso lixo.
5) O que você acha de leis proibitivas como a dos canudos, das sacolas plásticas, que na prática têm resultados um pouco controversos? Qual a sua opinião?
Essa questão das proibições de canudos, de sacolas, de prato, de talher plástico não é minha preferência de arquitetura regulatória. Eu não acho pessoalmente que o banimento deste tipo de instrumento seja eficaz para esse tipo de situação, a começar por uma questão muito simples: quem fiscaliza? Como isso é feito? Você vai de loja em loja, de bar em bar? Você vai nos restaurantes? Vai à praia dar multa, sair com talão na mão?
Trabalhando num órgão de controle a gente vê como é importante, para que a coisa funcione, que haja uma sistemática coerente de fiscalização, de controle, de coibição do não atendimento legal. Mas a gente também tem que reconhecer que é uma forma de avançar na pauta com o tipo de estratégia pé na porta, tem hora que se você não fizer isso você não sai do zero. É inegável que você traz o assunto para a sociedade discutir. Quando a gente fala por exemplo de banir canudo, banir sacola, o que eu acho fundamental só é que a legislação tenha duas coisas incorporadas.
“Você traz o assunto para a sociedade discutir”
A primeira é entender o contexto. Ou seja, não é este ou aquele produto, o que a gente tem que criticar é um modelo de consumo single use, é um modelo descartável.
Precisamos de coisas descartáveis? Talvez precisemos de algumas. Sei lá, uma embalagem plástica de um cateter cirúrgico esterilizado, não sei se pode ser de material reutilizável. Agora, pra você trazer suas compras do supermercado até sua casa em dez minutos, uma sacola de pano dá conta do recado. Então, tem situações e situações. O que a gente tem que tomar cuidado é que a lei não demonize um material ou produto específico, uma vez que a gente tem um problema muito amplo.
A segunda coisa é que essas leis, elas têm que ter muito claro que junto com a proibição, banimento, restrição ou o que quer que se queira propor, tem que ter um processo de educação ambiental do consumidor.
Então, são questões que têm que estar atreladas umas às outras. Não adianta só proibir o canudo, tem que fazer um movimento maior, de reflexão de hábitos de consumo e aí acho que a gente volta a uma discussão mais ampla, que seria uma transição para um modelo mais circular.
6) Trabalhando um pouco nessa questão do consumo e enxergando o Estado como o maior consumidor de bens e materiais. A gente sabe, por exemplo, que na Holanda, existe uma política de compras públicas seguindo padrões Cradle to Cradle ou de design circular. Eu queria saber o que tem sido feito nesse sentido em SP, e se você conhece outras instituições que têm trabalhado com essa política de incentivo vindo do próprio governo, como grande consumidor: esse governo pode gerar uma demanda de boas práticas?
Então essa pergunta é fácil responder pra mim porque São Paulo é estudo de caso global de compras públicas sustentáveis. O governo do estado de São Paulo faz todas as compras por meio de um único sistema eletrônico. Desde a administração penitenciária, ao gabinete do governador, à UNESP de Guaratinguetá e a gente aqui na CETESB. Qualquer pessoa, da administração direta ou indireta, para fazer qualquer compra, tem que usar o mesmo catálogo.
E neste catálogo alguns produtos têm um ícone. É o ícone do selo verde. Quando este ícone aparece, significa que aquele produto tem uma especificação incluindo critérios socioambientais. Aí os órgãos devem dar preferência de compra para ele. A secretaria do meio ambiente, da fazenda e do planejamento são obrigadas a comprar o produto que tem o selo. As outras, recomenda-se que se compre.
A gente fez uma meta para que até 2020, 20% de tudo que o estado de São Paulo compre ou contrate tenha critérios de sustentabilidade. A gente já está muito perto disso. Em 2014, dos 20 bilhões de reais por ano que o estado comprava ou contratava, 6 já estavam sob critérios de sustentabilidade.
Mas aí, é a minha opinião pessoal, só tem um problema: o critério é muito fraco. Ou seja, o que é um produto sustentável? O que determina se aquele selo é não outorgado? Ainda em alguns casos, talvez a maioria, ainda são critérios muito simplistas.
7) Boa parte da classe industrial e da classe política tem muita dificuldade de compreender os conceitos que a economia circular traz. A gente vê por exemplo, comparando com a Europa, que no Brasil existe toda uma diversidade de políticas públicas. Então por que o Brasil ainda está atrelado a questões mais básicas? E como você enxerga as possibilidades de a gente avançar para estado mais criterioso e mais claro também?
A gente entra num problema que não dá pra fugir. Existe um problema político no país. Eu não falo de política ambiental, falo de política. De quem representa quem, onde e com que posição e interesse. Na minha opinião, o primeiro ponto seria garantir que a classe política, quem toma as decisões políticas do país, represente os interesses da coletividade ou leve alguma forma aquilo que nós estamos trazendo para a pauta.
Por exemplo quando a gente fez o primeiro Plano de Resíduos do Estado de São Paulo. Eu fui à última audiência pública que era na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Era um plano para 20 anos, a partir de 2014. Com meta pra todo mundo, tinha um monte de coisas. Toda a nossa estratégia de resíduos ainda hoje é baseada naquilo, e na audiência pública tinha mais técnico da nossa equipe do que gente assistindo. Acho que tinha dois ou três deputados, pra não ser injusto. A gente fez na assembleia legislativa! Onde estavam os outros representantes? E hoje os deputados estão legislando sobre o assunto, que a gente planejou lá atrás, mas sem conhecer o nosso planejamento.
“Onde estavam os outros representantes?”
Além disso, eu acho que a gente tem um desafio muito grande de continuidade de programas. Na CETESB a gente não sofre tanto isso porque somos um órgão muito técnico. Nossa equipe, que é bastante grande, é na maioria de funcionários concursados, então dá para manter os programas.
Mas em outros estados, vejo muita instabilidade em órgãos ambientais que não têm a estrutura que a CETESB tem. Até mesmo órgãos do governo federal que sofrem muito com as mudanças de gestão completas. Você imagina, você fica 4 ou 8 anos às vezes tocando o projeto. Quando está começando a dar certo, muda uma gestão e alguém decide que o projeto não vai ser mais tocado. É uma frustração enorme. Existe uma necessidade muito grande de assegurar a continuidade de programas independentes de mudanças políticas.
E uma terceira questão que está atrelada a essas duas, é a participação pública. Como falei da audiência pública que tinha pouca gente, cada vez a gente vê menos presentes, e estão menos combativas, as instituições que deveriam representar a sociedade civil.
“É importante ouvir a voz das pessoas”
É necessário que as organizações não-governamentais (ONGs) se reempoderem deste papel de vir até o órgão ambiental, de ir à outras representações do governo.
De ouvir a população e fazer essa ponte para que a gente tenha esses estímulos. Para desenhar a política pública é importante ouvir essa voz das pessoas, e hoje eu sinto falta disso. A gente ouve muito as instituições porque estas veem até o CONSEMA, mandam ofícios, ou seja, usam os canais existentes pra se fazer ouvir. Mas as pessoas não estão encontrando esses canais. As próprias ONGs, que estão presentes nas discussões, nem sempre trazem opiniões que sejam da maioria.
8) Quais seriam esses canais? Para as pessoas ou organizações se comunicarem com os governos nas várias instâncias e participarem do desenvolvimento de políticas públicas?
O principal canal de comunicação que eu vejo, aqui em São Paulo, é o Conselho Estadual do Meio Ambiente. E em Brasília o Conselho Nacional do Meio Ambiente, respectivamente, CONAMA e o CONSEMA. Eles são órgãos com funções muito importantes onde a política pública é aprovada em última análise.
Nestes conselhos existem cadeiras designadas para a sociedade civil. Desde órgãos como OAB e CREA, universidades públicas, até organizações não-governamentais de fato. Tem cadeira, tem eleição para quais vão ser as entidades que vão representar a sociedade nos órgãos, conselhos e tal.
Saindo dos conselhos nacional e estadual de meio ambiente, existem estruturas mais pulverizadas. E aí depende da situação, por exemplo: na política de recursos hídricos tem os comitês de bacia. São muito bem estabelecidos. As políticas de resíduos, agora estão começando a existir consórcios com respectivos conselhos de resíduos sólidos.
Então, depende muito do assunto, mas esses são exemplos de canais. Eu acho que a gente precisa de uma participação maior nos conselhos estadual e nacional de meio ambiente. Não digo maior em número, digo mais empoderada.
Especificamente pra quem se interessa, o Conselho Estadual de Meio Ambiente, o CONSEMA, tem todas as suas sessões transmitidas ao vivo pela internet. Está tudo gravado, tem a pautas divulgadas com antecedência. Você consegue saber quando serão as plenárias e se quiser ir pessoalmente elas são abertas ao público, tudo o mais democrático possível.
9) Pensando na questão dos critérios, da nomenclatura, em relação ao que a gente tem de política de resíduos e que a economia circular propõe, o que é considerado hoje pela CETESB uma destinação correta de resíduos sólidos?
Essa pergunta das nomenclaturas é uma constante e nós aqui temos um grande problema com isso porque não existe uma resposta definitiva simples e válida para sempre para o que é uma destinação ambientalmente adequada. Cada lugar, material e situação talvez tenha uma resposta diferente.
Teoricamente a questão da destinação ambientalmente adequada tem que obedecer a grosso modo os três Rs. Agora em muitos casos a gente aceita que por no aterro é uma destinação ambientalmente adequada. O que não está no escopo é aquilo que a lei não permite.
Então eu diria o seguinte: é fácil saber o que é uma destinação não-adequada, como jogar direto no meio ambiente, seja no rio, seja no córrego ou queimar a céu aberto. Isso significa fazer uma destinação que vai provocar um dano ambiental que é imprevisível.
Nosso grande desafio não é mais por num aterro. É não precisar do aterro, é revalorizar o material, é não gerar, é pensar em mudança de design, de produto e de projeto. Mudança na forma de comercializar, de atender necessidades, tornar a economia de serviços mais frequente. Tirar o resíduo deste destino seja adequado ou não. A ideia é não ter mais resíduos e quando tiver, investigar como fazer o melhor aproveitamento. Mas isso nem sempre é fácil. Algumas situações são mais fáceis do que outras.
10) E (resumindo) quais são os principais desafios para área de políticas públicas em economia circular?
Gostou da entrevista? Ela faz parte do nosso curso Economia Circular na prática – entenda, desenhe, transforme, que oferece um percurso para a criação de produtos, processos e sistemas circulares – a partir de critérios claros e uma visão positiva de como contribuir para a construção de um futuro de abundância, e não de escassez. Assim como o Flávio, trazemos outros especialistas trazendo as suas perspectivas sobre economia circular a partir de diversas áreas de atuação.
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