Recentemente publicamos no blog da Ideia um estudo de caso sobre a Schneider Electric e a Google, duas grandes empresas que usam a chamada Indústria 4.0 em favor da transição rumo a uma economia circular.
Pra entender melhor o que a Indústria 4.0 significa e como ela se conecta à economia circular, conversamos com uma especialista na área: a Regina Magalhães, Diretora do Setor Automotivo e de Transportes da Schneider Electric para a América Latina.
A gente acompanha e admira o trabalho da Regina faz tempo – bem antes dela trabalhar na Schneider, primeiro como Diretora de Sustentabilidade e Inovação para a América Latina, e agora do Setor Automotivo e de Transportes. Ela é doutora em Ciências Ambientais pela Universidade de São Paulo, e foi colaboradora do relatório Uma Economia Circular no Brasil: uma exploração inicial, da Fundação Ellen McArthur. Já tivemos muitas discussões e colaborações interessantes em torno da ideia de uma economia circular com a Regina, e ela deu essa entrevista como convidada especial da aula sobre Novas Tecnologias do nosso curso Economia Circular na Prática: Entenda, Desenhe, Transforme.
Aqui você confere alguns dos trechos essenciais para entender a visão da Regina sobre economia circular e indústria 4.0:
1. A gente ficou na dúvida se usaria o termo Quarta Revolução Industrial, ou tecnologia 4.0, ou Internet das Coisas. Então primeiro eu queria te perguntar: o que é tudo isso? (rs) Se você pode deixar mais claro pra gente.
É, esses conceitos se misturam… O conceito de Quarta Revolução Industrial é o mais abrangente. A gente fala em “quarta” porque a gente teve a primeira revolução industrial que foi a introdução da máquina a vapor nos processos de produção. Isso trouxe um ganho de produtividade enorme e possibilitou a formação de indústrias em grande escala.
A segunda revolução industrial foi a emergência da energia elétrica, que transformou totalmente a indústria e a vida das pessoas, que passaram a contar com energia para iluminação e para os motores e máquinas industriais. Isso também provocou uma grande mudança em todos processos produtivos, e na forma até de organização da sociedade.
A terceira revolução industrial é mais recente. No início dos anos 70, 80, com o advento da computação, e com mais força ainda com o advento da internet.
E o que é considerado hoje a quarta revolução industrial é na verdade a convergência de várias tecnologias. Então você tem, em primeiro lugar, a possibilidade de combinar as tecnologias consideradas físicas – toda a parte de produção – com a tecnologia da informação, que é muito dependente do uso da internet das coisas de um grande poder computacional, que vem crescendo exponencialmente. Desde os anos 80 que o poder computacional quase que duplica a cada ano, tornando as tecnologias muito mais acessíveis, com custos muito mais baixos.
A Indústria 4.0 é uma linha um pouco mais específica, que faz parte dessa quarta revolução também.
A Indústria 4.0 tem duas grandes tecnologias como pilares fundamentais: em primeiro lugar, a Internet das Coisas, que permite a conectividade das máquinas e a possibilidade de um controle remoto de todas as operações.
E, em segundo lugar, a análise de grandes volumes de dados, gerados por essa conectividade. Isso acontece cada vez mais com o uso de inteligência artificial, e permite tornar todo o processo de produção muito mais eficiente, e uma capacidade de tomar decisões mais inteligentes em tempo real, que tem o potencial de multiplicar a produtividade da indústria muitas vezes.
Além disso, uma série de outras tecnologias, como a impressão 3D, blockchain, e outras que permitem criar novos modelos de negócio, novas formas de produção, novas escalas de produção. Permitem fazer com que você combine uma produção mais personalizada com uma produção em escala.
2. Tem alguma dessas tecnologias da Indústria 4.0 que te chame a atenção pra aplicação na economia circular?
Eu acho que na economia circular, a tecnologia da Indústria 4.0 mais importante sem dúvida é a Internet das Coisas. Porque ela possibilita você rastrear um material ao longo de toda a vida dele, desde a produção inicial de um produto, à utilização dele pelos usuários e à destinação dele para um novo ciclo de vida. A conectividade e o rastreamento dos materiais permitem essa circularidade com muito mais eficiência e com menores custos. Então ela dá potencial para gerar modelos de negócios que sejam viáveis e mais eficientes.
Você também vê uma série de iniciativas de utilização da impressão 3D, que possibilita você desenvolver produtos em pequena escala, produtos desenvolvidos a partir de materiais reciclados. Você tem uma variedade de produtos muito maior, e consegue desenvolver protótipos que reduzam o desperdício de materiais.
O Blockchain também tem um potencial importante, porque possibilita você garantir a origem exata desse material, e o acompanhamento da vida útil desse material. Então o Blockchain, junto com a Internet das Coisas, dá mais confiabilidade às informações sobre a vida útil dos materiais.
Então essa convergência de tecnologias tem tido um papel importante para viabilizar modelos de negócios que sejam possíveis hoje para a economia circular.
3. A gente viu que a Schneider Electric foi a grande vencedora do concurso The Circulars, na categoria multinacional. Quais ações da Schneider estão aproximando a Indústria 4.0 com a economia circular no Brasil e no mundo?
A Schneider Electric é uma empresa global, com atuação em quase todos os setores da indústria e da infraestrutura. A empresa trabalha com soluções tecnológicas pra gestão de energia e automação. Essas soluções são baseadas na internet das coisas e em softwares que permitem uma análise de dados e tomada de decisão inteligente. Então, esse conjunto tecnológico pode ser utilizado para a economia circular, como eu falei lá atrás.
Bom, em termo de gestão de energia, a Schneider tem como meta de 2018 a 2020 reduzir as emissões de gases de efeito estufa dos seus clientes em 120 milhões de toneladas de carbono. Só para se ter uma ideia do que isso significa, a indústria brasileira emite por ano 100 milhões de toneladas de carbono. Então a Schneider está contribuindo pra reduzir no mundo (entre os seus clientes, durante 3 anos) mais do que o Brasil emite em todas as suas indústrias anualmente. Então é um impacto muito grande. E como é feito isso?
A partir de tecnologias de conectividade que monitoram o consumo de energia e permitem tomadas de decisão que reduzam esse consumo, que tornem o uso da energia mais eficiente. Então, pensando em termos do ciclo do carbono, isso tem um potencial muito grande e uma contribuição muito significativa.
Além disso, todos os equipamentos que a Schneider fabrica, como equipamentos elétricos e de automação, são fabricados dentro do conceito de circularidade. Ou seja, eles são desenhados com o uso de materiais e com um desenho que permita a reutilização e a reciclagem desses materiais. A meta é que 100% dos equipamentos da Schneider utilizem esse conceito.
A gente também tem como meta a transformação, cada vez mais, de venda de produtos em venda de serviços.
Isso permite que Schneider maximize o uso desses equipamentos. Não apenas no tempo, mas também na durabilidade dos produtos ao longo da sua vida útil, fazendo a reutilização e a remanufatura de todos esses equipamentos.
Uma tecnologia utilizada, por exemplo, é um sistema que a gente chama de gestão de ativos. Baseada na Internet das Coisas, a Schneider pode monitorar todos os equipamentos de uma indústria (motores, equipamentos elétricos) de forma a acompanhar as características do desempenho desse equipamento, em termo de consumo de energia, temperatura, vibração.
Com isso, essa tecnologia consegue identificar se esse equipamento vai dar defeito, antes do defeito acontecer. Então, isso evita consequentemente uma parada de produção de uma fábrica, que é um prejuízo gigantesco. E permite que se faça pequenos reparos, pequenas substituições, que prolonguem a vida útil dos equipamentos.
Por fim, temos como meta também para o triênio 2018-2020 que todas as embalagens utilizadas pela Schneider sejam de materiais recicláveis, e sejam efetivamente recicladas.
4. Pode nos falar um pouco sobre a tendência à mudança de comportamento de consumidores e de modelos de negócios das empresas?
No caso de modelo de negócios, acho que o exemplo do carro ou da bicicleta é fácil de entender porque a gente já usa. Hoje você não precisa em São Paulo comprar uma bicicleta. A gente pode usar uma que está disponível via celular. Mas isso pode ser aplicado a quase todos os equipamentos que usamos.
A ideia é utilizar um determinado equipamento sem ter a posse. Com isso, você tem a tecnologia contribuindo para o uso compartilhado. E assim você tem também uma maximização do uso dos produtos. Cada vez mais isso vai ser uma prática de negócios. Mesmo em grandes empresas, ao invés delas fazerem um grande volume de investimentos, elas vão contratar serviços. Assim como as pessoas. Então isso traz uma grande mudança em termos de modelo de negócio.
A gente precisa se readaptar como consumidores. Muda a forma como a gente se relaciona com os produtos. A gente ainda tem um apego muito grande por ter a posse, a propriedade das coisas. Mas as novas gerações já entendem que a gente não precisa comprar, pode ter o benefício dessas coisas.
As empresas também precisam se adaptar à ideia de oferecer serviços ao invés de oferecer produtos. Para isso elas precisam entender muito melhor do que as pessoas precisam. Esta é uma tendência muito forte.
Os impactos positivos são muito grandes porque você torna os benefícios mais acessíveis. Ou seja, mais pessoas terão acesso ao uso dos produtos. Assim você também reduz o custo.
Por outro lado, também tem impactos negativos. Um deles a gente já começa a ver nas relações de trabalho. Elas mudam. Com a automação, é possível fabricar produtos cada vez com menos mão de obra. Isso também já está presente nos serviços. Então, a gente já viu a redução de mão de obra em fábricas, na agricultura e agora começa a ver em serviços. Estudos mostram que a quarta revolução industrial vai provocar por meio de suas tecnologias a redução de necessidade de pessoas trabalhando na produção e na geração de serviços.
Isso tem um impacto social gigantesco, como nunca vimos. As pessoas que trabalhavam na agricultura, após a automação, foram para as indústrias. E das indústrias foram para os serviços. Mas e agora que os serviços serão automatizados? Onde as pessoas vão trabalhar?
Precisamos nos reorganizar como sociedade. Para que as pessoas possam ter trabalhos de boa qualidade.
Para isso, vamos precisar de uma qualificação profissional muito grande. Algo que no Brasil estamos muito defasados. Precisamos fortalecer muito a educação, em todas as áreas de conhecimento. Precisamos de profissionais qualificados. Com criatividade, capacidade de utilizar informações para entender os consumidores, que entendam sobre ética para resolver questões éticas que o uso de inteligência artificial gera. Enfim, são desafios sociais importantes.
Em termos ambientais, as tecnologias dependem de materiais que não estão totalmente disponíveis. Equipamentos eletrônicos precisam de metais, isso requer um maior uso de mineração, por exemplo. Então temos que usar cada vez mais a economia circular para usarmos os materiais de forma eficiente e adequada.
5. Você falou sobre ética, educação. Como você vê o cenário atual brasileiro de políticas públicas e entendimento público para receber tudo isso que está chegando, todas essas novas tecnologias dentro da Indústria 4.0, todas essas novas formas de relacionamento?
A primeira coisa é do ponto de vista do indivíduo. A gente precisa educar mais as pessoas. A gente tem uma educação ainda pouco adequada para formar pessoas e profissionais diante dos cenários dessas novas tecnologias que fazem parte da Indústria 4.0. Então o primeiro ponto é este. No nível educacional, no Brasil que já era muito limitado, comparado a outros países do mundo, a distância entre a qualidade da educação brasileira e as demais, ela vai ficando cada vez maior se a gente não mudar a qualidade e o estilo de educação que é oferecida para a população.
Segundo, as empresas. As empresas também precisam se preparar melhor. Não só em termos técnicos. Claro que elas precisam conhecer as tecnologias, entender sobre as tecnologias e como elas podem utilizá-las da melhor forma dentro da . Mas elas também precisam passar por mudanças culturais. Assim elas saberão se adaptar e adaptar seus modelos de negócios aos usos dessas novas tecnologias.
As empresas que não conseguirem fazer isso, dentro de cinco ou dez anos não vão existir mais.
Porque essas novas tecnologias vão mudar totalmente os padrões de competitividade do mercado. Então, é uma condição de sobrevivência de empresa de qualquer ramo, de qualquer área. Elas (empresas) precisam saber como operar dentro dessas novas tecnologias.
Em termos de políticas públicas tem uma questão importante. É a regulação. A gente já está avançando em alguns passos nisso. Por exemplo, com a lei de acesso a dados pessoais. Mas a gente tem muita coisa de regulamentação, por exemplo, do uso da internet das coisas, do uso de inteligência artificial. Assim como da promoção de novas tecnologias por startups, do uso dessas tecnologias para a própria gestão pública, participação das pessoas nas decisões. Então, a gente tem muito o que evoluir para que a gente tenha instituições e pessoas preparados para o uso dessas novas tecnologias.