Há mais de uma semana os incêndios na Amazônia foram um dos assuntos mais comentados do mundo. A hashtag #prayfortheamazon (reze pela Amazônia) chegou a ocupar o primeiro lugar mundial no twitter na quarta-feira 21.
A imagem do fogo consumindo a floresta é muito forte. Ela causa uma angústia profunda em quem entende, instintivamente, a importância do que está sendo queimado. Essa angústia mobilizou uma reação importante: panelaços no Brasil, protestos nas embaixadas brasileiras pelo mundo, declarações de líderes políticos e empresariais, questionando as políticas federais em relação à Amazônia e ao meio ambiente.
Para além dos impactos negativos dos incêndios na Amazônia e em outras matas brasileiras, a força dessa reação nos faz observar também efeitos positivos. É importante que os olhos do mundo se voltem para a Amazônia neste momento. É importante que o governo federal se veja ao menos constrangido a dizer que vai proteger a floresta, que vai combater o desmatamento. É essencial pensar em um outro modelo de desenvolvimento para a Amazônia. Com mais inteligência, que rompa com vícios históricos de um país que se iniciou como colônia e seguiu com a exploração de recursos primários como principal motor de sua economia.
É necessário que haja uma nova pauta. Focada na potência da biodiversidade e de recursos renováveis. Capaz de entender a floresta não como entrave ao desenvolvimento, e sim como fonte de riquezas incalculáveis – e, se bem geridas, inesgotáveis.
Incêndios na Amazônia: quem quer queimar a floresta?
O fogo não é um fenômeno inédito, ainda que seja o pior registro em 7 anos.
O que é inédito e significativo, além da repercussão da notícia pelo mundo, é que a degradação da floresta venha quase que com o aval do governo federal, que vem prometendo – e efetivando – o desmonte dos órgãos e mecanismos de fiscalização do desmatamento. Nenhum governo assumiu com tanta clareza seu projeto anti-preservação, anti-floresta, como vem fazendo Bolsonaro desde a campanha presidencial.
Mais intensamente desde as eleições, o governo vem cumprindo as promessas de campanha nesse sentido, seguindo numa direção de desmonte de políticas e instituições de defesa do meio ambiente. Desde descrédito na ciência, resistência em receber verbas externas para a floresta, além de declarações presidenciáveis que diminuem ou ridicularizam as preocupações ambientais, até a hostilidade contra grupos e organizações ambientalistas.
Nesse contexto, os incêndios na Amazônia têm uma força ainda maior. Tanto pela destruição literal, quanto pela metáfora desse projeto de país, em que a floresta é vista como um entrave.
“Não é dessa forma que a gente vai conseguir atingir nosso objetivo”
Ainda que a primeira acusação (sem provas ou cabimento) do governo tenha sido de que as próprias ONGs de defesa da floresta seriam responsáveis por dar início aos incêndios na Amazônia, investigações vêm identificando a ação orquestrada de produtores rurais de cidades do Pará.
Estes inclusive anunciaram seus planos na imprensa local convocando um “Dia do Fogo” em 10 de agosto (dia em que realmente se viu uma explosão dos focos de incêndio nas cidades de Novo Progresso e Altamira). Como afirma um dos organizadores, anônimo, ao jornal Folha do Progresso: “Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e o único jeito é derrubando”.
Em transmissão live no dia 22/08, o presidente se comunicou diretamente aos fazendeiros da região que estariam ateando fogo em áreas florestais. “Há suspeita que tem produtor rural que está agora aproveitando e tacando fogo geral aí. As consequências vêm para todo mundo. Se vocês querem ampliar as áreas de produção, tudo bem, mas não é dessa forma que a gente vai conseguir atingir nosso objetivo.”
O negrito é nosso, para destacar que o presidente não apenas reafirma sua chancela à ampliação de áreas “produtivas” em detrimento da floresta (“tudo bem”), como também se coloca com o mesmo objetivo dos desmatadores responsáveis por começar os incêndios na Amazônia.
E esse objetivo é o mesmo tantas vezes declarado e anunciado por Bolsonaro em campanha: trazer “desenvolvimento” econômico para a Amazônia. E, para isso, parece também acreditar que “o único jeito é derrubando”. Ou seja, acabando com a “indústria das multas”, com a demarcação das terras indígenas, e com a atuação “xiita” de ONGs e agências internacionais.
Outros modelos
É verdade, Presidente, não é dessa forma que a gente vai atingir o nosso objetivo.
O fato é que há outras formas de ampliar a produção, sem ter que ampliar “áreas de produção“. Isso porque, se usarmos a tecnologia para o desenvolvimento econômico dos produtos de origem amazônica, o Brasil não vai precisar mais desmatar para ampliar sua produção agropecuária, e isso quem fala é o presidente da Sociedade Rural Brasileira, Marcelo Vieira em matéria da BBC.
Ele afirma que a área atualmente ocupada pela agropecuária é de 30% do território brasileiro, e com ganhos de produtividade que já são empregados nas últimas décadas, é possível produzir mais que o dobro do que o setor produz hoje na mesma área. Ou seja, a agropecuária brasileira não precisa expandir (a área utilizada) para crescer sua produção. Não existe a menor necessidade de termos incêndios na Amazônia.
Segundo Carlos Nobre, cientista formado pelo ITA e doutor pelo MIT e especialista em Amazônia, o Brasil tem terra desmatada e abandonada suficiente para continuar a aumentar a produção (a Embrapa estima em 50 milhões de hectares de pastagens degradadas). Além disso, a pecuária brasileira é extremamente ineficiente. A produtividade da pecuária na Amazônia equivale a um quarto da de São Paulo, com menos de um boi por hectare. Só com o manejo simples, nada moderno, é possível ter três.
A inovação agropecuária holandesa
Vejamos o exemplo da Holanda para entender do que o engenho humano é capaz quando decide investir em inovação. Há quase duas décadas, os holandeses assumiram um compromisso nacional de dobrar a produção de alimentos, utilizando metade dos recursos. O país é pequeno e populoso e com pouca oferta de recursos naturais, quando comparado à países como Brasil, China ou Estados Unidos. Mas mesmo assim, segundo matéria da National Geographic, conseguiu se tornar o segundo maior exportador em alimentos (em valor monetário) do mundo.
E isso se deve ao desenvolvimento de uma região que eles chamam de ‘Vale dos Alimentos’. Liderados pela Universidade de Wageningen, o polo une a produção científica com empreendedorismo e tecnologia. Para aumentar o rendimento agrícola, os fazendeiros usam tecnologias de ponta como o uso de iluminação LED para viabilizar o cultivo em estufas com controle climático rigoroso 24 horas por dia, simbiose de bactérias e plantas para compensar a falta de nutrientes e produção do próprio adubo, e o uso de recursos renováveis como energia e água de chuva para a produção.
Como resultado, os agricultores holandeses conseguiram reduzir a dependência de água em até 90%, eliminar praticamente o uso de pesticidas químicos nas plantas cultivadas em estufas, e os produtores de aves e fazendeiros de gado reduziram em 60% o uso de antibióticos nos animais.
Modelo linear
Investir em inovações como essas – adaptadas, obviamente, ao nosso contexto – permitiria tornar mais saudável e efetiva a agropecuária brasileira, sem ter que concorrer com a preservação da floresta. Mas não: o governo brasileiro insiste em um modelo linear, destrutivo e falido para o desenvolvimento da Amazônia, herdado dos anos da ditadura militar e do nosso passado colonial).
Inclusive ao acusar genericamente as ONGs de serem agentes dos interesses geopolíticos, ou recusar a contribuição estrangeira a fundos de preservação da floresta, Bolsonaro está evocando a teoria conspiratória da internacionalização da Amazônia, difundida pelos militares para justificar a ocupação predatória da floresta: “integrar para não entregar”.
Era preciso ocupar e explorar economicamente a floresta, antes que inimigos estrangeiros o fizessem. E aí começa o desmatamento sistemático. O Governo Federal dos militares financiou a construção da Transamazônica e o envio de colonos sulistas para derrubar a floresta em troca de áreas de pastagem e monocultura de soja, e estimulou a extração linear e predatória de madeira de lei – o “ouro verde”.
Gado, soja e mineração
Bolsonaro é herdeiro dessa visão de mundo, e é esse modelo de exploração que ele defende como desenvolvimento. Mantém-se o gado, e a soja para alimentar o gado. Com um requinte: agora temos a mineração das reservas de nióbio presentes na Amazônia como fonte de cobiça e promessa-panacéia de desenvolvimento econômico.
O problema de que grande parte dessas reservas estão em terras públicas de usufruto dos povos originários do Brasil resolve-se paralisando ou revertendo a demarcação das terras indígenas, intenção reiterada pelo presidente em diversas ocasiões da campanha e do governo.
Recentemente, o presidente defendeu a criação de “pequenas Serras Peladas”, que poderiam ser exploradas tanto por grupos estrangeiros como por povos indígenas. Localizada no Sudeste do Pará, a Serra Pelada experimentou, a partir de 1980, enormes transformações sociais e ambientais com a chegada de dezenas de milhares de garimpeiros.
Pautada no lucro imediato, tem consequências irreversíveis, que resultaram num aumento da violência, miséria e baixo índice de desenvolvimento humano em toda a região.
Destruir a floresta por nióbio – e outros minérios – não é um bom negócio
Como exemplo deste direção da política do extrativismo primário de minerais para exportação, podemos analisar o caso do nióbio. Um metal que vem sendo exaltado desde a campanha eleitoral como promessa de desenvolvimento econômico pela mineração. Isso porque 98,2% das reservas mundiais desse metal estão em território brasileiro. E ele tem diversas aplicações tecnológicas interessantes. A adição de quantidades mínimas de nióbio torna o aço mais resistente sem perder maleabilidade, o que permite, por exemplo, a fabricação de chapas bem mais finas.
Mas diversos especialistas questionam o entusiasmo do governo com o nióbio como promessa para a economia brasileira. E, principalmente no caso da nossa discussão, qual seria a vantagem em explorar as reservas em solo amazônico.
Segundo a FAPESP, 75% das reservas brasileiras de nióbio estão concentrados em Araxá, Minas Gerais. Lá, o metal é explorado desde 1965 pela Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM). Outros 4% estão localizados em Catalão, Goiás, explorados pela CMOC Brasil, braço de uma empresa chinesa. E os outros 21% correspondem aos depósitos em solo amazônico, que o governo parece tão ávido em explorar. Só que o nióbio pode ser substituído na maioria de suas aplicações.
O vanádio ou o titânio podem substituí-lo, por exemplo. São metais presentes em diversos outros países, que não têm motivos para depender das exportações brasileiras. As reservas exploradas pela CBMM em Minas Gerais são suficientes para abastecer toda a demanda mundial pelos próximos 200 anos. Ou seja, apesar do nosso quase monopólio de produção, o metal tem um mercado global limitado. Além disso, o Brasil só exporta o nióbio em si. Não investe no desenvolvimento de produtos e tecnologias derivadas do minério. Repete o padrão colonial linear e empobrecedor de exportação matérias-primas e importação de produtos prontos.
Essas considerações em relação ao nióbio podem ser aplicadas a outros minérios. Ainda que a demanda internacional possa ser mais promissora…
Sem investimento em inovação, e sem considerar de que forma essas matérias-primas vão circular pela nossa indústria, a extração e exportação desse tipo de commodity não gera nenhum desenvolvimento econômico para o país que se sustente no longo prazo.
Industrialização da Biodiversidade
Muito mais promissor seria “ocupar” a região com desenvolvimento científico e tecnológico para agregação de valor desde a base de produção para beneficiar as populações locais, a partir dos recursos abundantes e renováveis da própria floresta. Segundo Carlos Nobre, a solução seria uma economia baseada na bioindustrialização, com a geração de conhecimento e empreendedorismo que potencializem ativos biológicos e biomiméticos da biodiversidade.
Exemplo de um desenvolvimento pautado na abundância e na biodiverisidade é a cultura do açaí produzido no Pará. A fruta, considerada como “ouro roxo” na região, até duas décadas atrás era um fruto local, apenas da região amazônica, e hoje, é a base para produtos diversos na indústria alimentícia e cosmética e chega a gerar mais de 1,5 bilhão de dólares anualmente para a região amazônica.
Para Nobre, os investimentos nesse sentido podem gerar mais desenvolvimento local, principalmente se forem criadas bioindústrias na própria região Amazônica, produzindo e exportando produtos de muito maior valor agregado, gerando melhores empregos e inclusão social.
Como a biodiversidade amazônica é imensa, existe aí um potencial para dezenas de outros produtos regionais. O que poderia, inclusive, além de desenvolvimento econômico, gerar melhores empregos e inclusão social.
Amazônia 4.0
E como isso poderia ser feito? Por meio de investimento em conhecimento científico e tecnológico na Amazônia. O que Carlos Nobre chama de “Amazônia 4.0”. Uma alternativa econômica que destaca o papel das novas tecnologias na Quarta Revolução Industrial. Elas podem ajudar a explorar positivamente os valores tangíveis da biodiversidade amazônica.
São valores ainda não conhecidos, mas que por meio de investimento em ciência e tecnologia na região podem se tornar uma realidade. Uma sugestão é colaborar com as populações em comunidades amazônicas para desenvolver novas tecnologias e gerar novos usos e produtos a partir dos ativos florestais, respeitando e estimulando o conhecimento já adquirido por essas comunidades no seu tratar com a floresta.
Biomimética
Como vimos, os incêndios na Amazônia, assim como a queima de outras florestas para atividades agropecuárias extensivas ou extração de matérias primas não-renováveis, são uma herança do passado brasileiro. Este olhar, de quem vê a floresta como empecilho para a economia, está ligado à lógica linear de produção, que deve ser ultrapassada como estratégia – para o país e também para o mundo como um todo.
Por outro lado, as maiores inovações tecnológicas da atualidade são inspiradas na observação da engenharia complexa e sofisticada dos organismos biológicos seguindo a lógica da biomimética. Como país que detém a maior floresta e biodiversidade do mundo, temos a chance aliar a tecnologia ao conhecimento gerado pela natureza por bilhões de anos para um desenvolvimento mútuo e diverso.
Podemos entender a natureza como fonte não só de materiais, mas principalmente de aprendizado e inspiração para a indústria humana, e gerar formas de crescimento que caminhem em conjunto, e não contra ela.
Celebrar a diversidade
Precisamos celebrar a diversidade, como sugere o terceiro princípio do Cradle to Cradle, a metodologia que inspira nossa abordagem da Economia Circular. Diversidade de espécies, culturas e soluções. E o melhor caminho para isso é potencializar soluções locais, buscando um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, e para o nosso país.
Só assim podemos acabar com a “guerra contra a natureza” – como a Greta Thurnberg vem reinvidicando – e transformar o Brasil em uma potência econômica e tecnológica, com uma indústria que seja regenerativa e inovadora. E que possa inspirar, em vez de horrorizar o mundo, como tem sido no caso dos incêndios na Amazônia.
Do passado ao futuro
Pode parecer muito otimista, ou distante da realidade que vivemos. Porque agora os interesses no poder estão ligados a essa visão ultrapassada, linear e destrutiva, de desenvolvimento econômico. E isso tem causado bastante angústia, desilusão e pessimismo em quem vinha trabalhando por uma outra visão de desenvolvimento.
Mas a gente escolhe ser realista.
E reconhecer que a história não é linear: os retrocessos existem, e são amargos. Mas o futuro está brotando, por todas as partes. Está sendo criado por milhões, bilhões de pessoas, que cada vez mais reconhecem que é possível, e necessário, fazer diferente. Pelas pessoas do mundo inteiro que “rezam” pelo fim dos incêndios na Amazônia – e cobram satisfações do governo brasileiro. Pela maioria dos brasileiros que, independente de sua inclinação política, não concorda com a destruição da floresta.
Ainda que o passado possa vir mostrar sua força destrutiva, como sentimos nas últimas semanas com os incêndios na Amazônia… Ele não vai conseguir queimar o futuro que se anuncia. Mais cedo ou mais tarde, chega a hora de abandonar o passado. E rumar em direção a propostas mais inovadoras, que nos permitam conviver em prosperidade com outras espécies, culturas e visões de mundo.
A natureza não é linear; ela é circular, abundante e regenerativa. E o nosso futuro, se trabalharmos por isso, também será.