O I Fórum Nordeste de Economia Circular (FNEC) aconteceu de 23 a 25 de novembro de 2023, em Salvador, reunindo mais de 200 especialistas em uma programação intensa de palestras, oficinas e mesas redondas que ocuparam simultaneamente 4 museus do chamado Corredor da Vitória.
Este foi o segundo grande evento de economia circular realizado no Brasil. Antes dele, a I Semana de Economia Circular havia acontecido em 2022, organizada pela Prefeitura Municipal de São Paulo, Fundação Ellen MacArthur e UCCI – União das Cidades Capitais Ibero-Americanas. (Você pode conferir o relatório que elaboramos sobre o evento aqui!)
Já o Fórum Nordeste de Economia Circular foi, como o próprio nome indica, o primeiro evento de economia circular no Nordeste, e também o primeiro idealizado e organizado por iniciativa de brasileiros. Ou, mais especificamente, de uma brasileira: Lídice Berman, a Liu, cidadã baiana residente em São Paulo, que sonhou e viabilizou o Fórum em tempo recorde – e veio contar pra gente um pouco sobre essa experiência.
Além de idealizadora do Fórum Nordeste de Economia Circular, Lídice é co-fundadora do movimento Reinventando Futuros e do Coreto Criativo. Empreendedora criativa que ama o que faz, mãe de 3, sua trajetória é fundada na circularidade, de forma intuitiva e cada vez mais mais intencional, e pautada pela ocupação transformadora de espaços públicos.
Nesta entrevista, Liu conta sobre essa trajetória, e compartilha mais: sobre o caminho que levou ao I Fórum Nordeste de Economia Circular em Salvador, os principais desafios e realizações na organização do evento, o potencial que a região tem para essa pauta, e quais são os planos para os próximos Fóruns Nordeste de Economia Circular!
Você pode assistir ao vídeo com a entrevista, e também ler a transcrição logo abaixo.
Transcrição
Parte 1: Jornada da Liu
Carla: Liu, estou muito feliz de estar aqui com você hoje! Muito bom poder ter essa conversa. Só para dar um contexto: a Liu entrou em contato no meio do ano passado, falando que estava articulando esse Fórum Nordeste de Economia Circular. E eu fui – foi em Salvador, em novembro. Fui representando a Ideia Circular. E fiquei muito impressionada com esse evento! Com a forma como você organizou e o porte do evento, e o significado dele também nesse momento. Acho que é o primeiro grande evento organizado aqui no Brasil, por brasileiros, e no Nordeste. Eu falei: “Nossa, que moça porreta que organizou esse negócio inteiro!”
Então, queria primeiro te perguntar um pouquinho sobre sua história, do teu interesse, do teu contato com a economia circular e como que te veio essa ideia do Fórum Nordeste de Economia Circular?
Liu: Joia, eu que agradeço o convite e a conexão com vocês! Eu tive até a oportunidade de, presencialmente, contar um pouco para a Carla que minha jornada com a economia circular – quando comecei, quando entendi que mergulharia, nesse ano de 2023 que passou, na pauta da economia circular – comecei a pesquisar quem já estava falando sobre isso, quem já estava pautando, quem já estava atuando e transformando a realidade brasileira com a pauta.
E encontrei vocês! Fiquei encantadíssima com o site, com os conteúdos que vocês oferecem. Comecei a consumir… Participei de algumas lives, fiquei encantadíssima, e me aprofundei totalmente nos conteúdos disponibilizados por vocês. O manual, um evento que foi realizado, acho que aqui em São Paulo, que contou com a presença de muita gente, inclusive algumas lideranças internacionais também participaram. E eu me inspirei… Com certeza, quando comecei meu processo de aprendizado, de construção, a Ideia Circular foi muito importante nesse meu processo. Então estar aqui hoje, fazendo essa troca com vocês, pós-Fórum, pós-conexão presencial, desdobrando já para isso, para mim é muito gratificante, muito feliz. E torço para que a gente possa continuar nesse processo, porque ele está só começando.
Falando um pouco sobre minha trajetória profissional e como cheguei a esse lugar de olhar para a economia circular… Eu trabalho com criatividade há quase 20 anos. Nasci em uma família de empreendedores, trabalhei nesse processo de empreender junto com a família, mas desde muito nova sabia que desejava trabalhar com criatividade. Então, empreendia, mas queria empreender com criatividade. Meu primeiro negócio criativo foi um brechó, de forma muito intuitiva e criativa também.
Engravidei e fui mãe aos 21 anos, então precisava trabalhar. Tive a ideia de montar um brechó na casa do pai das minhas filhas, que era uma casa grande. E aí a gente fez aquele processo de fazer a energia circular, né? “Vamos tirar do armário tudo aquilo que não faz sentido para a gente, mas que com certeza vai fazer sentido para outras pessoas”.
Foi minha primeira experiência com eventos, numa casa onde a gente misturou linguagens artísticas, apresentação musical, a venda dos usados, os novos estilistas. E foi a minha primeira experiência de fato na área de produção de eventos. Depois, isso desdobrou no segundo ano para uma casa de shows enorme, onde já estava vendendo stand na planta para poder fazer o “Brechó da Garagem”, que era o nome. Logo depois, fui para um ponto fixo mesmo e abri um brechó com esse conceito, que a gente fez como evento, para um lugar fixo.
Obviamente, há 20 anos, o mercado não estava pronto para essa conversa. E foi também o meu primeiro grande prejuízo, ou grande frustração de um negócio que não deu certo. Então eu entendi que, por mais criativo que tudo aquilo fosse, por mais sentido que fizesse… Foi uma experiência de muitos aprendizados, mas, financeiramente falando, eu não conseguia ainda furar aquela bolha das pessoas que achavam que era roupa de gente velha, de não pensar de forma consciente sobre consumo. Se hoje a gente ainda tem dificuldade, imagine 20 anos atrás.
A partir daí, eu trilhei uma carreira na área de produção cultural e artística, onde tive a oportunidade de fazer grandes eventos. Trabalhei com quase todos os artistas nacionais que admiro. Fiz turnê com Gilberto Gil, que também foi uma super experiência, shows com Gal Costa, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, Adriana Calcanhotto, Lenine. Foi muita história. E eu sempre ficava nesse processo de transição da CLT para empreender. Até que, mais ou menos em 2015, tomei a decisão realmente. Já tinha meu terceiro filho e sentia que não estava conseguindo me cuidar, não estava conseguindo cuidar das crianças. Abri mão daquela segurança mais uma vez e fui em busca de desenvolver meus projetos.
Criamos um coletivo chamado “Coreto Criativo”, que era um espaço, uma casa que reunia empreendedores e produtores, onde cada um tinha uma função naquele processo. Um era do audiovisual, outro escrevia os projetos para editais, outro executava. E a gente começou uma nova construção de projetos, e tive a oportunidade de me reconectar com o começo da minha história, que era essa coisa de montar uma feira criativa, onde eu tivesse a parte dos usados.
Então a gente criou o projeto “Coreto Hype”, um projeto de ocupação de espaço público, onde ocupamos muitas praças da cidade de Salvador, e também em outros estados. Onde a gente reunia a economia criativa, a sustentabilidade, a música e a gastronomia. Quando se faz uma ocupação dessas na rua, é muito mais complexo do que fazer dentro de um espaço fechado bonitinho. Porque a rua tem uma complexidade mesmo de tudo.
Então a gente precisou entender, aos poucos, ao passar dos anos, como poderia impactar menos o lugar, o território que estávamos ocupando. Porque a ocupação é maravilhosa – geralmente eram espaços ociosos, ou seja, estavam parados, descuidados. E aquele movimento de ocupação trazia vida, conectava a comunidade local, o bairro voltava a frequentar aquele lugar. Mas obviamente a gente gerava muito resíduo: muita lata, muito plástico, muito óleo, porque era gastronomia, food trucks, barracas de comida… a gente começou a entender que precisava não só ter um discurso bonito de ocupação e tudo mais, mas precisava também, de fato, agir com melhores práticas. Começamos, então, um processo de gestão de resíduos e de conscientização dos empreendedores e do próprio público.
Isso foi bem desafiador… Principalmente quando a gente resolveu tirar o copo plástico, a gente quase apanhou na feira! As pessoas ficaram revoltadas, porque “que absurdo, como é que tira o copo”? E a gente deu a opção de um copo bonitinho, com a marca do projeto, você só pagava cinco reais para tirar o copo e podia devolver esse copo depois, que a gente fazia todo o processo de higienização para ele voltar a circular no evento. Mas isso foi um processo, sabe?
Depois de alguns anos atuando e ocupando espaços públicos, com diversas experiências acumuladas, criamos o movimento “Reinventando Futuros”, inicialmente com o objetivo claro de promover a economia circular. Mas depois comecei a pensar que não dá para falar de economia circular sem falar de ancestralidade, sem falar de cidadania, sem falar de cura, sem falar de tanta coisa… Então veio a ideia de construir um Fórum. Por quê? Porque não tem melhor maneira da gente começar e colocar uma bandeirinha mesmo, de start, num processo de conhecimento, de troca de aprendizados.
Parte 2: Início do Fórum Nordeste de Economia Circular
Também fui convidada pelo Banco do Nordeste para integrar a governança do PRODETER, que foi o primeiro programa de desenvolvimento territorial focado em economia circular. E eu fiquei assustada, porque quando eu fui para a primeira reunião, a galera só falava de reciclagem, só falava dos atravessadores… E aí eu falei, cara, como é que eu vou ajudar? Como vou contribuir nessa governança se o que eu sei fazer e falar é sobre mudança de comportamento, sobre mobilização social? Então eu falei exatamente isso, falei “gente, tecnicamente falando, eu não tenho como contribuir, porque essa não é a minha expertise, mas o que eu tenho como contribuir é na mobilização realmente da sociedade, e para isso eu estou criando vários projetos que toquem, que sensibilizem essas pessoas”.
E então começou um processo árduo e solitário para desenvolver esse Fórum. Vim morar em São Paulo depois de receber um convite para atuar dentro de um escritório que já trabalhava com todas essas pautas de economia circular, sustentabilidade, reciclagem e tudo mais, um monte de coisa que tinha a ver.
E quando eu vim, comecei a pesquisar mais ainda as pessoas que atuavam… Da mesma forma que eu cheguei em vocês, eu fui chegando nas pessoas que estavam de fato já transformando isso, e comecei a mobilizar as pessoas e elas não me diziam, “ah, não, não tenho interesse”. Elas falavam, “é, vamos ver, vamos ver.” E continuava nesse “vamos ver”… As pessoas começaram a me falar assim, “Mas por que você quer fazer isso no Nordeste? Você já está aqui em São Paulo, ninguém nunca fez isso, não é melhor fazer logo aqui, não?” Aí eu falava, “Olha, a única razão de eu não fazer, a única chance de eu não fazer no Nordeste, é se o governo da Bahia me disser não”.
Aí, finalmente, eu consegui, através da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado da Bahia, que uma liderança, que é o secretário, o Ângelo Almeida, me recebesse. E quando eu apresentei o projeto, ele entendeu que aquilo era uma grande oportunidade, de fato, para trazer isso para o Nordeste. E que não só isso, vários dos programas que eram desenvolvidos dentro do governo do Estado da Bahia se conectavam com a pauta. A galera só não tinha autoridade, só não entendia o que era a economia circular de fato. Então, eles não podiam bater o martelo, estufar o peito e falar que o Nordeste já faz isso, porque nem a galera sabia o que era economia circular.
E nessas articulações políticas, eu cheguei no Consórcio do Nordeste, e o Consórcio do Nordeste conseguiu ampliar, de fato, o caminho que eu precisava. Porque quando eu conversei com o chefe de gabinete, ele me falou assim, “Liu, o projeto é maravilhoso, é muito legal, mas as minhas lideranças políticas, os governadores, eles não se conectam com essa pauta, então como é que você vai fazer isso?” Aí eu falei, eu não posso fazer um Fórum para uma bolha de pessoas que já atuam, que já trabalham, porque se não, a gente não consegue fomentar nem fazer as transformações necessárias. Então, pera aí, vamos dar um passo para trás e vamos montar uma estratégia política para fazer isso acontecer. Porque se a gente não sensibilizar quem assina a lei, os tomadores de decisões, a gente não vai conseguir fazer nada.
E foi assim que eu comecei o processo de vai para um, vai para outro, manda ofício para todos os governadores e insiste, naquela coisa da brasileirinha que não desiste nunca. O governo do Estado da Bahia entrou, o governador topou, e aí a gente levantou o Fórum Nordeste de Economia Circular em dois meses! E foi isso, foi uma loucura boa, gostosa e ao mesmo tempo desesperadora… Mas que no final das contas a gente conseguiu realizar, foi bom para caramba e a gente já está agora trabalhando nas próximas edições.
Parte 3: Público do Fórum Nordeste de Economia Circular
Léa: Quem era o público desse evento?
Liu: Basicamente, eu acho que quem engajou foi a parte acadêmica, os estudantes. A gente teve alguns negócios que são, não circulares, mas ele tem o desejo, ele tem algumas práticas que aproximam ele disso, ele está no caminho, mas ele ainda não é de fato um negócio circular… E a gente teve também muitas lideranças políticas, muitas. Porque foi uma estratégia da gente trazer essas lideranças políticas também para participarem.
Parte 4: Consórcio do Nordeste
Carla: Você comentou do Consórcio do Nordeste, eu acho que seria legal você contar o que é o Consórcio do Nordeste. Porque eu não conhecia, e eu fiquei bem impressionada, parece que também é uma inovação política, né? Então eu gostei bastante de conhecer.
Liu: O Consórcio do Nordeste surgiu na época da pandemia, como uma forma do Nordeste, dos governadores, se juntarem para pensarem estrategicamente nas soluções para os desafios da pandemia. E deu super certo, e hoje em dia esse Consórcio do Nordeste tem uma articulação política muito poderosa para o Nordeste, com investimentos, com programas… Eles estiveram também agora na COP, foram para lá, existe uma câmara temática onde são discutidas uma série de desafios do Nordeste mesmo. E eu também não conhecia, tá Carla? Eu conheci através de uma indicação de uma pessoa do Banco do Nordeste, que me falou, olha, eu acho que o Consórcio do Nordeste precisa estar dentro disso. Então assim, eles se reúnem estrategicamente, esses governadores, e eles começam a desenvolver projetos que estão ligados aos desafios de cada estado, sabe? E tem os investimentos todos.
Eu achei muito importante e significativo a presença do Consórcio do Nordeste, tanto que a gente foi bater primeiro na porta do Consórcio do Nordeste do que na do governo do estado da Bahia. E quando eu bati lá na porta dele, ele falou assim, “ó, mas eu não posso fazer nada se o governador do Estado da Bahia não acionar a gente”. E eu falei, “ah, entendi”. Fui para o governo do Estado da Bahia e falei, “olha, já estive com o Consórcio do Nordeste, eles estão com a gente, mas você precisa dar um oi pra eles lá, pra eles saberem que é de interesse do governo da Bahia”. E foi assim que aconteceu. E eles fizeram uma espécie de cooperação técnica, ou seja, eles mobilizaram essas lideranças políticas para que eles pudessem estar presente.
Então a gente teve a Sudene também, que é uma Superintendência de Desenvolvimento Econômico do Nordeste, que também é uma outra articulação muito forte e potente do Nordeste, e eles estavam presentes lá. A PNUD estava lá com a gente também, então assim, essa articulação e cooperação técnica para que a gente pudesse ter pessoas importantes que precisavam estar sendo ali impactadas com aquilo que a gente estava fazendo, muito veio também a partir dessa parceria técnica com o Consórcio do Nordeste. Eles têm um site, eles têm um Instagram e eles são bem ativos assim, sabe, é um grupo, é um consórcio mesmo, onde eles desenvolvem esses projetos para poder resolver os desafios do Nordeste, e colocar o Nordeste num lugar de representatividade.
Parte 5: Desafios da Economia Circular no Nordeste
Léa: Vindo um pouco para esses desafios e talvez para as potencialidades da região, queria saber de você como é que você entende, dentro da economia circular, quais são os grandes desafios que a região enfrenta? E quais são os potenciais também, porque é uma região riquíssima. E como você vê que os Fóruns que você está desenvolvendo, como isso pode trazer mais força para esses potenciais?
Liu: Léa, então, eu acho que o maior desafio que a gente tem hoje é a falta de conhecimento, sobretudo dessas lideranças. Porque eu também não vou te dizer que o nosso Fórum, com três dias de Fórum, a gente conseguiu mobilizar e sensibilizar todas as lideranças políticas necessárias. Não, não vou falar isso, porque isso é um absurdo. Mas, pra mim, com certeza, o maior desafio é a falta de conhecimento mesmo, tanto das nossas lideranças políticas quanto da sociedade civil com essa pauta. É uma pauta ainda que está muito distante, eu acho, da maior parte da população, em termos de conhecimento e entendimento.
Então, a falta de conhecimento atrasa todo o processo de transição, ela atrasa até o desenvolvimento de novos negócios. Por exemplo, quando eu comecei a estudar economia circular, eu ouvi falar em design circular, quer dizer, quantas pessoas ainda não sabem o que é design circular? Então, assim, como é que a gente vai empoderar que novos empreendedores, que novos designers surjam, se falta o conhecimento básico sobre o assunto.
Então é educação, não tem jeito. A gente precisa trazer essa pauta para dentro das escolas, a gente precisa trazer isso para dentro das escolas, para mim, numa esfera de educação ainda fundamental mesmo, sabe? Para que as crianças se conectem com essa pauta desde lá, porque se não a gente não vai conseguir. Então, eu acredito sim que o desafio é a falta de informação, a falta de conhecimento, e isso impede que mudanças e transformações aconteçam.
Falando de potenciais e oportunidades, de fato, a região do Nordeste é uma região que, territorialmente falando, é uma região muito rica. A gente tem hoje na Bahia a questão do hidrogênio, uma planta de hidrogênio verde, e eles estão super animados com isso, porque é uma coisa muito representativa, inclusive mundialmente falando. A gente sabe também das questões das energias renováveis e das questões das energias oceânicas, que também é algo que está sendo pouco falado, que as pessoas têm pouco conhecimento de economia do mar, de energia oceânica.
Mas, o Nordeste, a região do Nordeste tem um potencial absurdo para isso e já está sendo visto, a gente tem visto o SENAI CIMATEC desenvolvendo um campus só de economia do mar, sabe? Então, Léa, acho que de fato a gente tem grandes oportunidades aí na área das energias renováveis, na área do hidrogênio verde. E, quanto mais conhecimento, quanto mais empoderamento essas lideranças tenham sobre essa pauta, fica mais fácil da gente também conseguir atingir a sociedade, e os empresários, e as indústrias, e os empreendedores num movimento como esse, sabe? Eu acho que é isso.
Parte 6: Diversidade no Fórum Nordeste de Economia Circular
Carla: Eu percebi que o evento teve um cuidado muito grande, assim, na forma como ele foi organizado, de ser muito diverso, inclusivo, né? Eu queria te perguntar, então, quais foram esses princípios que eu vi que nortearam a organização, a realização do evento? E também para você o significado de ter sido em Salvador essa primeira edição, além de você ser de lá, mas eu acho que isso trouxe também uma identidade bem interessante, queria que você conversasse um pouquinho sobre isso.
Liu: Sobre a questão da inclusão e da diversidade, a gente ficou muito tempo se questionando sobre as lideranças desse movimento serem pessoas brancas, pessoas que não tinham lugar de fala para um monte de coisa. E, a gente entendeu que não dava pra falar de economia circular, se a gente não vai falar de inclusão, de diversidade, de cidadania… Então como é que a gente resolve isso? Porque mais do que a gente esconder isso, fingir que isso não existe, porque não tem espaço para isso, é a gente reconhecer essa vulnerabilidade, digamos assim, do processo que a gente estava construindo.
E aí a gente também entendeu que a gente não precisava construir isso sozinho. Então, vamos construir um comitê de inclusão e diversidade, com pessoas que possam de fato ter esse lugar de fala e nos orientar também, para que a gente não erre, ou para que a gente erre o mínimo possível, porque o erro também está no processo.
Então nós convidamos pessoas com representatividade, como o próprio Zig, que foi o nosso apresentador, o nosso mestre de cerimônia, um homem preto, cadeirante. Quer algo mais disruptivo, e que as pessoas não estão habituadas a irem em um evento e ver um homem preto cadeirante apresentando, do que isso?
Foi muito importante a presença do Zig com a gente. Primeiro, porque a gente não sabe nada sobre acessibilidade, a real é essa. A gente acha que sabe, mas quando a gente se depara com a realidade do outro, muito pertinho da gente, ele faz a gente abrir a cabeça para um monte de coisa que a gente não vive, não sente na pele, então a gente não tinha como saber. Mas, que o olhar dele, ele tinha um olhar, e a gente sabia que ia ter vários desafios com a questão da acessibilidade.
Aí, a gente tinha também a presença de duas outras mulheres pretas, uma pessoa que é Priscila Arantes, que é inclusive gerente de comunicação do Sistema B. Então, a Priscila tem um instituto que é o “Instituto Afroella”, então ela trouxe pra gente também um outro olhar sobre inclusão e diversidade. A gente tinha o tempo inteiro uma preocupação assim, meio que numérica mesmo, do tipo, “caramba, a gente só tá com especialista do Sul e Sudeste, não pode, cadê a galera do Nordeste?” Então foi uma curadoria pensada o tempo inteiro em, pelo menos, equilibrar essa brincadeira.
E mesmo assim, foi extremamente desafiador, porque as pessoas que têm conhecimento, que detêm conhecimento sobre essa pauta, são pessoas brancas, são pessoas do Sul e do Sudeste. Então, não que não exista no Nordeste, não é sobre isso, mas a gente tem mais dificuldade.
E aí, a gente teve uma outra curadora, que é a Verinha, que é uma mulher preta também, e traz um olhar artístico da diversidade. Então ela fez uma curadoria artística, e trouxe artistas de outros estados e do Nordeste, sobretudo do Nordeste. Para trazer o seu olhar de arte nordestina, e para que a gente pudesse compensar também. Se eu não tenho tantos especialistas no Nordeste para falar de economia circular, eu tenho a arte, eu tenho a cultura, sabe? Então, basicamente, a gente assumiu o nosso lugar – o nosso não-lugar – de fala. Deixamos isso muito claro dentro do processo: da nossa vulnerabilidade, de não saber, de precisar de ajuda. A gente convidou um comitê de inclusão e diversidade que criou esses procedimentos, que abriu o nosso olhar para isso, e seguimos isso.
Aí eu te digo, com isso foi tudo perfeito? Não, longe disso. Tivemos vários problemas, vários desafios, aprendemos na dor, na porrada. E principalmente eu… Porque como eu era linha de frente, quando tinha algum problema como esse, as pessoas vinham até mim e me falavam mesmo. E eu acolhia aquilo, me colocava num lugar de vulnerabilidade, me colocava no lugar de acolher aquilo que você tá me falando. “Entendo, e vamos pra frente, o que eu prometo é que a gente vai melhorar”. Porque não tinha outra coisa a ser feita, sabe? Então, eu acho que é isso. Você fez mais alguma pergunta que eu esqueci?
Carla: Eu tinha te perguntado de Salvador.
Liu: Ah, Salvador!
Carla: Com essas questões, que eu acho que em muitos eventos passa batido. Já teve muitas, só homens, só homens brancos, sabe? Então, acho que ali tinha muito essa consciência, não?
Liu: Eu acho que, assim, eu penso assim, sabe? Tem uma coisa que a galera da Bahia fala… E aí, longe de mim, tá sendo prepotente, porque eu também acho que isso não é legal, mas rola muito isso. Que, assim, “a Baiana não nasce, Baiana estreia”, aquela coisa. O Baiano é bom pra caralho em tudo. O Baiano… isso, eu, assim, eu acho que isso atrapalha um pouco a gente, em vários momentos.
Ao mesmo tempo, falando de Bahia e falando de Salvador, essa pauta (economia circular) é uma pauta inexistente na minha cidade. Então, pra mim, tinha muito significado começar por lá. Foi muito importante e representativo começar, porque eu sabia que os meus maiores desafios seriam lá. Eu me sinto pronta, meninas, pra ir pra qualquer lugar do mundo pra fazer isso. Porque, depois do que eu vivi na Bahia, com quatro museus simultâneos, nada vai ser mais desafiador do que isso. Então foi muito bom começar de Salvador, justamente porque a gente começou do lugar mais complexo e desafiador do Nordeste.
A partir daí, eu tenho muita consciência de que, obviamente, a gente pode viver desafios e dificuldades. Mas, com certeza, vai ser mais fluido, vai ser mais leve e vai ter menos essa coisa de, tipo assim, ter que ocupar quatro museus ao mesmo tempo, aquela loucura, sabe? Porque a Bahia é sobre isso também.
Parte 7: Planos para Futuros Fóruns Nordeste de Economia Circular
Carla: Então, vamos aproveitar pra te perguntar, né? Quais são os planos agora pro futuro? Porque eu sei que a ideia é não ser um Fórum só, né? Esse Fórum vai circular, então conta onde vão ser os próximos, quando, o que você está pensando, o que tem definido aí?
Liu: Então, inicialmente, o nosso desejo, digamos assim, pessimista, é entregar um Fórum por ano. Mas depois a gente ficou se perguntando, “cara, mas são oito estados ainda, a gente vai demorar oito anos pra rodar esse Nordeste! Não vai dar certo isso, a gente precisa acelerar esse processo”. Então a gente está – de forma otimista, digamos assim – planejando dois Fóruns para esse ano de 2024.
No primeiro semestre a gente tem uma programação e uma previsão de ir para Pernambuco, para Recife. E no segundo semestre, a gente quer ir para Alagoas, Maceió. As datas eu não consigo compartilhar ainda, porque a gente ainda está no estudo mesmo das datas. Mas, em relação ao Fórum, essa é a nossa programação. Então, já já a gente começa um processo de… já começamos, na verdade, né? De pré-produção, de organização e tudo mais.
E tem um projeto muito legal que a gente está fazendo e que começa agora em maio, que é a expedição Reinventando Futuros. Que é um ônibus adaptado, que vai circular o interior do Nordeste e chegar em praças públicas – óbvio que eu ia dar um jeito de parar em praça pública, ocupar territórios… E esse ônibus vai levar pra esses territórios e municípios, as pautas de economia circular, economia criativa, desenvolvimento sustentável e empreendedorismo.
Esse é um projeto que está aprovado pela Lei de Incentivo Estadual da Bahia, com patrocínio da Neo Energia, que é a nossa COELBA, né? E a gente começa pelo interior da Bahia. Depois, a gente tem uma programação de ir pra Brasília com esse ônibus, junto com a galera do Instituto Lixo Zero Brasil, pra poder participar, com a experiência do ônibus, da expedição do Cidade Lixo Zero, que acontece em junho também, lá em Brasília.
Então essa expedição, mais do que ser uma experiência (porque ela já, obviamente, vai ser uma experiência), mas ela tem um objetivo também muito importante, que é fazer o mapeamento e o diagnóstico desses territórios que a gente vai passar. Porque aí fica mais fácil depois de levar um Fórum, de levar uma ação como essa. Porque a gente já entende melhor o diagnóstico daquele território.
Então, essa expedição eu acho que vai ser também um momento de muito aprendizado pra gente, e vai também fortalecer o Fórum. E depois a ideia é que esse ônibus saia de Brasília e vá para Pernambuco para ser também parte da experiência do Fórum. Porque aí ele já vai estar se conectando com tudo que a gente vem fazendo, sabe? Então, para 2024 a gente tem muito trabalho aí, graças a Deus, estamos super animados e…
Carla: Tem muita estrada, né? Muita estrada.
Liu: Tem muita estrada para circular. Mas é isso.
Léa: Liu, eu queria, na verdade, voltar um pouco com a questão… Você estava falando da diversidade. Uma coisa que a gente, desde o começo, um ponto que a gente levanta é que a economia circular foi criada, levantada, esse movimento foi organizado lá no Hemisfério Norte, muito centrado em países muito ricos, muito organizados, com uma indústria bem formatada, com uma legislação ambiental muito mais forte. E, a hora que chega aqui, a gente tem que fazer esse esforço de traduzir isso, não é simplesmente importar esse conceito, apesar de entender a sua importância…
A minha questão é como é que você vê toda… frente a esse desafio de trazer para uma sociedade muito mais complexa, que é a nossa, esses conceitos que vêm de países que já estão mais organizados, como a gente pode traduzir isso pra cá? Como que você vê, nesse sentido, a economia circular se formando aqui com uma outra cara?
Liu: Eu acho que quando eu comecei esse processo de estudar a economia circular e de entender quem estava fazendo, eu vi vocês muito nesse lugar, de fazer essa intermediação e essa tradução do que era. Até pelo próprio método que vocês trazem, que vocês aplicam e explicam. Então, eu acho que realmente não dá pra gente trazer de lá e aplicar aqui, porque a nossa realidade é muito diferente. Uma vez conversando com o Pedro Prata, ele me falou “Liu, eu estava num evento internacional e tal sobre economia circular e não se fala nem de reciclagem lá”. A gente sabe, né, então como é que a gente não vai falar de reciclagem?
Então, assim, é muito contraditório o processo. Não dá pra gente trazer de lá, de fato, e aplicar aqui, dessa forma. Mas eu acho que o brasileiro tem a criatividade como grande ferramenta a favor pra poder fazer esse processo acontecer de uma forma mais conectada com a realidade do nosso país, com a realidade dos territórios.
Eu acredito muito na criatividade, Léa, como essa grande bandeira para acelerar esse processo de transição, e para também ajudar a fazer essa adaptação. Porque, de fato, a gente não vai conseguir trazer de lá para cá e achar que vai dar certo. E a gente também não tem uma fórmula pronta, não tem um livro de receitas que diz como fazer para aplicar isso aqui. Eu acho que a gente vai continuar precisando absorver muito conhecimento, vai continuar precisando beber das fontes que estão aí já transformando.
E aí, eu acho que, falando de política – porque eu acho que política é vida! Tem gente que fala “mas eu não gosto de política, não me envolvo com política”. Eu me envolvo com política porque pra mim na vida a gente respira política, tudo é política. É óbvio, respeito os posicionamentos de cada um, mas não dá pra gente não atuar politicamente falando.
Então, eu também que existe obviamente uma grande mudança de olhar e de visão do Governo Federal. Não existe perfeição, existem uma série de desafios… O tempo é diferente do tempo que a gente necessita, que a gente gosta, mas a gente consegue sim enxergar passos que estão sendo dados. E eu acho que a gente vai ter que juntar política, vai ter que juntar criatividade, vai ter que juntar os especialistas e os entendedores, né, e a sociedade civil para conseguir trazer isso de forma criativa e conseguir adaptar.
Eu não tenho uma resposta exata, mas eu acredito que a criatividade vai nos ajudar nesse processo. Ela tem grandes chances de nos ajudar nesse processo.
Léa: E a diversidade, né?
Liu: E a diversidade, com certeza, que é a marca do nosso país, do nosso território. Até porque, quando a gente fala, os povos originários já atuavam dessa maneira. Então, eu acho que a gente tem que realmente olhar para a ancestralidade mesmo. Olhar para a nossa diversidade, para os nossos povos e tentar fazer essa adaptação da melhor forma possível – e rápido, né?