Em vez de ficar sempre batendo na tecla da redução de danos ao meio ambiente, por que não projetar desde o início produtos saudáveis que possam ser reutilizados infinitamente?
(Versão original do artigo publicado na seção Página Aberta da revista Veja no dia 07 de dezembro de 2016)
Preservar o meio ambiente é urgente e necessário, mas a maneira como isso vem sendo feito está ultrapassada. A linguagem empregada pelos programas de sustentabilidade tradicionais é negativa e insuficiente, ao bater nas teclas da minimização, redução, prevenção e compensação. O objetivo de quase todos os métodos usuais de proteção ambiental é fazer produtos mais eficientes e, ao mesmo tempo, menos destrutivos. Mas isso não está dando certo – ser menos ruim não é suficiente.
Por exemplo: quanto mais modernos ficam os telefones celulares, mais aceleram o consumo de recursos, pois são vendidos aos bilhões. Cada aparelho contém uma média de 41 elementos químicos e nenhum país recicla mais do que nove deles. Todos os metais raros são desperdiçados. É a predominância da lógica “do berço ao túmulo”.
A proposta que defendemos vai em outra direção, a começar pelo nome: Cradle to Cradle, ou “do berço ao berço”. O objetivo é a circulação de todos os materiais como nutrientes, em ciclos biológicos ou técnicos. Produtos de consumo que entram em contato com sistemas naturais, como cosméticos e detergentes, devem ser formulados desde o início tendo em mente um retorno seguro à biosfera. Equipamentos contendo elementos raros, não renováveis ou potencialmente tóxicos, por sua vez, devem ser desenhados para reutilização contínua na esfera tecnológica, sem contaminações e sem desvalorização.
Isso exige estímulo a modelos de negócios inovadores, baseados não só na simples venda de manufaturados, mas também na prestação de serviços. Cabe aos fabricantes pensar mais à frente, para tirar partido do uso continuado do material de que seu produto é feito. Requer ainda um design criativo, que se preocupe em recuperar componentes de alto valor, tornando a obsolescência programada uma ideia obsoleta. Redesenhar produtos e sistemas para que sejam saudáveis para os seres humanos e a biosfera não é uma questão de ética, de ser “ecologicamente correto”. É questão de inteligência e qualidade.
Empresas em todo o mundo estão usando utilizando o conceito de design do Berço ao Berço para melhorar as suas receitas e a competitividade de seus produtos. A mesma ideia vem sendo aplicada com frequência na construção de edifícios e áreas urbanas, planejados desde o início para resultar em espaços que beneficiam o meio ambiente e seus usuários.
Surpreendentemente, o Brasil é pioneiro em algumas tecnologias do tipo “do berço ao berço”, fato que a maioria dos brasileiros desconhece. Um exemplo é a tecnologia de reciclagem de nutrientes biológicos para o reuso de esgoto – isso mesmo, esgoto – através de biodigestores, desenvolvida nos anos 1990 em colaboração entre o EPEA e a ONG O Instituto Ambiental. Aplicado com sucesso em locais onde não existe saneamento público, o sistema recupera o metano presente na decomposição orgânica para produzir gás doméstico, e ainda aproveita o lodo resultante como fertilizante. Além das vantagens econômicas, a água que sobra e vai parar nos rios é bem mais limpa. Essa tecnologia foi exportada com sucesso para o Haiti e a Nicarágua, entre outros países, e deveria ser mais disseminada no Brasil, onde o déficit de saneamento é significativo.
O aproveitamento em ampla escala do metano e também do CO2, gases do efeito estufa, pode mudar completamente o debate sobre mudanças climáticas, e para melhor. Uma nova tendência, que chamamos the new organic, trata resíduos humanos e gases do efeito estufa como recursos para a fabricação de novos produtos.
Há quem receie que esta abordagem acabe servindo de desculpa para travar as iniciativas em prol da redução das emissões de gases poluentes. É uma preocupação válida, mas o fato é que vale a pena, em termos econômicos e de preservação do meio ambiente, recuperar e dar uma utilidade às emissões de poluentes atuais enquanto se trabalha para substituí-las por tecnologias mais limpas.
Em relação à energia renovável, o enorme potencial brasileiro de geração de energia solar começa a ser explorado, mas qual a necessidade de importar da China painéis solares que, quando forem descartados, acabarão como resíduos tóxicos em solo brasileiro? O Brasil pode produzir painéis de qualidade, desenhados para serem reciclados. O custo inicial seria compensado por ganhos em eficiência e na comercialização como serviço, em vez de produto.
Outro potencial de inovação no Brasil, grande produtor de embalagens, é desenvolver papel e tinta seguros e compostaveis, a partir de novas tecnologias. Qualquer empresa capaz de suprir a alta demanda por papel impresso “saudável” terá enorme vantagem competitiva no mercado de exportação.
O conceito “do berço ao berço” está na base da economia circular, um sistema que vem sendo muito abordado na mídia e em estudos recentes. Mas não se trata de sinônimos. Nem todos os proponentes da economia circular reconhecem a importância do uso de materiais saudáveis. Algumas empresas europeias adicionam cinzas tóxicas de incineradores aos tijolos e acham que estão integradas ao sistema. Longe disso. A incineração é uma resposta linear, míope e deselegante ao problema do acúmulo de resíduos, porque elimina qualquer possibilidade de revalorização de preciosos materiais descartados.
Para que a circularidade seja segura e efetiva, devemos selecionar criteriosamente as substâncias químicas na formulação de qualquer produto, de forma que, desde sua concepção, ele utilize materiais e componentes saudáveis e reutilizáveis continuamente, com alta qualidade. Neste momento, é preciso ir além do conceito atual de sustentabilidade e celebrar os desafios ambientais como motores da inovação em sentido positivo. O Brasil, com sua diversidade cultural e abundância de recursos, é campo fértil para esta nova mentalidade ambiental.
Autores: Michael Braungart, Douglas Mulhall, Léa Gejer e Carla Tennenbaum