A certificação Cradle to Cradle de produtos, que já é reconhecida como o processo de certificação mais relevante para reconhecer produtos desenhados para uma economia circular, está prestes a ganhar uma nova versão, com melhorias significativas. A versão 4.0 traz mudanças em todas as 5 categorias, e deve valer a partir de 2020. Desde agosto, essas alterações vêm sendo divulgadas em detalhes pelo Cradle to Cradle Products Innovation Institute (C2CPII – Instituto Cradle to Cradle de Inovação de Produtos). E até 18 de outubro de 2019, o documento e seus anexos estão abertos a consulta pública para receber o feedback de indivíduos, empresas e organizações interessadas. Este feedback, junto das recomendações de comissões multissetoriais, vai ser considerado na redação final da versão 4.0 do Padrão de Certificação Cradle to Cradle. Se você quiser participar ativamente desse processo, aproveite! Porque esta é a última semana para enviar os seus comentários.
Aqui a gente conta um pouco sobre a história deste processo de certificação, o que o diferencia de outros protocolos existentes, e resume de forma geral as mudanças propostas nessa nova versão 4.0. Quando a redação final for divulgada, em 2020, a gente vem contar com mais detalhes o que passa a valer!
Sobre o Cradle to Cradle
A metodologia de design Cradle to Cradle (C2C) foi desenvolvida pelo engenheiro químico alemão Prof. Dr. Michael Braungart e pelo arquiteto americano William McDonough e divulgada em seu livro Cradle to Cradle – Remaking the Way We Make Things, de 2002, considerado uma das maiores referências atuais do pensamento sobre sustentabilidade. O modelo C2C busca soluções efetivas (ao invés de apenas eficientes) e definitivas para os sistemas industriais, usando materiais saudáveis e que mantenham seu valor por vários ciclos produtivos. Para isso, a indústria deve se inspirar nos sistemas naturais interdependentes e regenerativos, possibilitando a prosperidade econômica de longo prazo.
Para saber mais sobre os três princípios que fundamentam o desenho de produtos e sistemas circulares a partir do pensamento Cradle to Cradle, você pode baixar nosso guia digital gratuito de introdução aos 3 princípios do design circular Cradle to Cradle.
O Programa de Certificação Cradle to Cradle
O Programa de Certificação Cradle to Cradle foi estabelecido pelo MBDC (McDonough and Braungart Design Chemistry) em 2005, como um inventário interno de avaliação e protocolo de otimização. Em 2010, os direitos do Programa de Certificação foram cedidos para uma associação independente e sem fins lucrativos, a Cradle to Cradle Products Innovation Institute (C2CPII) – Instituto Cradle to Cradle de Inovação de Produtos. O Instituto é sediado em Oakland, na Califórnia – EUA, com um escritório em Amsterdam, e assessores licenciados em diversos países. No Brasil, a Flock, liderada pela Léa Gejer (uma das fundadoras da Ideia Circular), atua como representante do EPEA GmbH, a agência do próprio Michael Braungart, que atua na área de engenharia química desde 1984 e, além de ter ajudado a moldar os critérios de segurança de materiais da certificação Cradle to Cradle, é o assessor mais antigo e prestigiado do processo.
Atualmente há mais de 570 produtos certificados por mais de 150 empresas de 15 países.
Se quiser conhecer alguns exemplos concretos, você pode conhecer alguns produtos certificados, e ter mais detalhes sobre o processo de certificação no site do Instituto.
Por que a certificação Cradle to Cradle tem sido usada para reconhecer produtos desenhados para a Economia Circular?
Muitas pessoas nos escrevem perguntando sobre se existem certificações para a economia circular. Ou, ainda, se devemos confiar ou nos apoiar nas certificações ambientais existentes para tomar nossas decisões no desenho de produtos circulares, já que muitas não vão além de sistemas de compensação ou de eficiência.
Isso porque quem já está familiarizado com a discussão sobre a economia circular sabe da necessidade de desenvolver critérios e métricas claras para a circularidade. Afinal, agora que empresas de todo o mundo – e, cada vez mais, também do Brasil – estão começando a usar esse termo em campanhas de marketing, é preciso garantir que as pessoas tenham como identificar quem realmente está comprometido com essa transformação, e quem usa o termo “da boca pra fora”.
Além da metodologia Cradle to Cradle ser uma das principais (se não a principal, na nossa visão) base teórica da Economia Circular, ela é a única corrente de pensamento que não apenas foca no desenho de produtos industriais, como também vem, ao longo dos últimos 15 anos, trabalhando para traduzir seus princípios em critérios científicos e métricas específicas que possam certificar a saúde e circularidade de materiais e processos em vários tipos de produtos industriais. Assim, dos protocolos existentes, este nos parece o mais completo para orientar quem trabalha com design circular.
Outro ponto interessante é que o protocolo compreende 5 níveis de certificação, do básico ao platina. Isso permite que produtos nos mais diferentes níveis de desenvolvimento sejam reconhecidos. Assim, a certificação guia designers e fabricantes por um processo de aperfeiçoamento contínuo na gestão de materiais e recursos. E também ajuda empresas a demonstrarem que estão alinhadas com essa visão, mesmo que seus produtos ainda não sejam “perfeitos”.
Como funciona a certificação Cradle to Cradle
Categorias
A certificação se divide em 5 categorias:
1 – Saúde dos materiais
A categoria de saúde do material ajuda a garantir que os produtos sejam fabricados com os produtos químicos mais seguros possíveis para o ser humano e o meio ambiente através de um processo de inventário, avaliação e otimização das químicas do material. Como um passo em direção à certificação completa, os fabricantes também podem obter um Certificado de Saúde do Material separado para produtos que atendem aos requisitos.
2 – Circularidade dos Produtos
A categoria de reutilização de material tem o objetivo de eliminar o conceito de lixo, ajudando a garantir que os produtos permaneçam em ciclos contínuos de uso e reutilização.
3 – Energia Renovável e Clima
Esta categoria visa garantir que os produtos sejam fabricados com energia renovável, para que o impacto das mudanças climáticas causadas pelos gases do efeito estufa seja reduzido ou eliminado.
4 – Gestão de Água
A categoria de manejo da água ajuda a garantir que a água seja reconhecida como um recurso valioso, as bacias hidrográficas sejam protegidas e a água potável esteja disponível para as pessoas e outros seres vivos.
5 – Justiça Social
O objetivo desta categoria é projetar operações comerciais que honrem todas as pessoas e sistemas naturais afetados pela fabricação de um produto.
As duas primeiras categorias, referentes à saúde e circularidade, são focadas nos materiais empregados na manufatura de um produto. As três categorias seguintes se referem ao próprio processo de fabricação. O produto é avaliado em cada uma dessas categorias, e o nível geral de certificação é equivalente à nota mais baixa recebida em qualquer uma delas. Dessa forma, o protocolo reconhece a necessidade de uma visão sistêmica e integrada: não adianta investir em energia renovável sem considerar condições dignas e justas de trabalho para os empregados e colaboradores da empresa, por exemplo. As várias categorias permitem reconhecer as forças e fraquezas de um produto, e trabalhar na otimização das categorias mais urgentes de melhoria, de forma a poder avaliar de forma holística e integrada os impactos do produto para as pessoas e o planeta.
Níveis
Desenhada para estimular processos de melhoria contínua, a certificação pode ser outorgada em 5 níveis distintos: Básico, Bronze, Prata, Ouro e Platina. Depois disso, a cada dois anos a certificação é renovada, confirmando se os planos de melhoria estão sendo colocados em prática, e se é possível atingir patamares mais altos da certificação.
Para cada um dos 5 critérios da certificação, o material ou produto atinge a classificação a partir dos pré-requisitos e de sua qualidade. Como comentamos, a avaliação geral do produto é sempre qualificada com a menor classificação atingida por um (ou mais) dos critérios. O nível Básico é o menos desafiador, mas também só é concedido uma vez. Após dois anos, o produto deve ter progredido para o nível bronze para ter a certificação renovada. Já a categoria Platina representa o ideal para a metodologia Cradle to Cradle, e traz os requisitos mais avançados para produtos e processos circulares.
Novidades na Versão 4.0
A versão 4.0 do padrão de certificação Cradle to Cradle traz mudanças significativas em todas as categorias. Não vamos entrar em todos os pormenores sobre cada uma delas, mas comentar as tendências gerais da nova versão, na forma como foi proposta e comunicada pelo Instituto C2CPII até agora.
Enquanto a categoria de Saúde dos Materiais da certificação Cradle to Cradle já é reconhecida como referência mundial, a reformulação buscou fortalecer as outras categorias, tornando-as mais rigorosas, mas ainda factíveis. Houve um esforço intencional em alinhar os requisitos do protocolo com princípios da economia circular, atualizando-se para manter a liderança como padrão de certificação para verificar produtos desenhados para esse novo paradigma. Veja abaixo algumas das principais mudanças que estão sendo propostas por categoria.
Saúde dos Materiais
Na categoria Saúde dos Materiais, destaca-se o esforço de harmonização com regulamentações de segurança química internacionais como a REACH, RoHS, e Convenção de Estocolmo. Ao mesmo tempo em que os requisitos de segurança se tornam mais rigorosos para cada nível da certificação, houve um esforço para torná-los mais flexíveis para conteúdo reciclado. Nas versões anteriores, era difícil obter altos níveis de certificação para produtos com conteúdo reciclado pós-consumo não-homogêneo, justamente pela dificuldade em verificar a sua segurança. Agora, análises laboratoriais ajudam a superar esse desafio e garantir que esses produtos possam ser certificados, desde que se comprove a saúde dos insumos usados na sua composição.
Circularidade de Produtos (antiga Reutilização de Materiais)
Além da mudança de nome da própria categoria, outra mudança interessante em nomenclatura é o uso dos termos “ciclado” (cycled) e “ciclável” (cyclable), ao invés de reciclado e reciclável. Aqui, a ideia é englobar diversas formas de circularidade, como a reutilização ou remanufatura. Além disso, a categoria passa a diferenciar três vetores distintos:
- Os insumos circulares se referem ao conteúdo “ciclado” ou rapidamente renovável no produto.
- O design circular reconhece produtos desenhados para os próximos ciclos, incluindo o design para desmontagem e outras estratégias intencionais para destinação aos próximos ciclos.
- Os sistemas circulares possibilitam a recuperação efetiva dos materiais ou componentes do produto, com parcerias estratégicas. Além disso, é comunicada ao usuário a forma adequada de destinação após o uso.
No caso dos insumos circulares, outra novidade é a tabela de porcentagens recomendadas de conteúdo ciclado. Aqui o protocolo é específico, mas também flexível, trazendo recomendações distintas para cada tipo de material. Além disso, a empresa solicitante tem a opção de não atender a esse requisito e ainda assim obter um nível alto de certificação. Para isso, precisa justificar – e divulgar publicamente – por que o uso de conteúdo ciclado não é possível naquele produto.
Energia Renovável e Clima
As mudanças nessa categoria fazem com que medidas positivas sejam necessárias mesmo para os níveis mais baixos de certificação. De forma geral, os requerimentos de todas as categorias se tornam mais rigorosos. Nesse sentido, a nova versão reconhece e valoriza a necessidade de ação imediata contra as mudanças climáticas.
Gestão de Água
A nova versão também traz alguns critérios mais rigorosos nesta categoria, focando em questões de quantidade e qualidade da água usada na manufatura do produto. Nesse sentido, também se torna necessário trabalhar questões críticas relacionadas à água na cadeia de suprimentos.
Por outro lado, cria-se uma flexibilidade maior do que nas versões anteriores, aplicando alguns requisitos apenas a materiais ou fornecedores dos quais se esperam altos impactos quantitativos ou qualitativos relacionados à água. Por exemplo, com processos que são conhecidos como muito poluentes, como os do algodão (impactos qualitativos), ou materiais que necessitam grandes volumes de água em localidades em que essa é escassa.
Justiça social
Essa categoria, que era mais vaga nas versões anteriores, se torna bem mais específica. Os requerimentos se alinham com normas internacionais de direitos humanos, e mais uma vez seguem a lógica de melhoria contínua. Assim, no nível Básico, é necessária a avaliação e resolução dos riscos mais altos (como trabalho infantil ou escravo). Já no nível Platina, as recomendações representam as melhores práticas nessa área, com critérios de justiça social, diversidade e inclusão presentes nas estruturas operacionais de contratação, treinamento, remuneração, avaliação e incentivos da empresa. Por exemplo, a prática já adotada por algumas empresas de divulgar publicamente dados de equidade de pagamento por gênero, ou entre o salário de executivos e a média dos trabalhadores.
Próximos passos
Para criar essa nova versão, grupos de stakeholders de diversas indústrias ofereceram seu feedback na construção dos novos requerimentos. Além disso, a versão 4.0 ficou disponível e aberta à consulta pública e comentários de qualquer indivíduo, empresa ou organização pelo período de 5 de agosto a 18 de outubro de 2019. (Se você estiver lendo isso antes desse prazo, pode acrescentar seus comentários neste link).
Se a consulta pública trouxer mudanças consideráveis na versão 4.0, pode ser aberto um novo período para consulta e comentários. Caso contrário, a redação final da versão 4.0 do Padrão de Certificação Cradle to Cradle será divulgada no início de 2020, quando entrará em vigor, substituindo a versão 3.1.
No Brasil
No Brasil, você já consegue encontrar alguns produtos certificados, que, na maioria das vezes, são importados. Esse é o caso de produtos da C&A, Desso, Shaw, Accoya, entre outros. Em 2017, a Remaster certificou o primeiro produto no Brasil, um piso elevado produzido com polipropileno (PP) reciclado, que também é 100% reciclável.
Com o interesse crescente pelo tema da economia circular no Brasil, é possível que esse cenário mude. Realmente, esperamos que cada vez mais produtos brasileiros possam usar a certificação como uma ferramenta com critérios claros para verificar e comunicar seus esforços de transformação. Mas, independente da certificação em si, acreditamos que essa metodologia que vem sendo desenvolvida ao longo dos últimos 15 anos tem um grande valor como orientação e apoio para quem quer se dedicar ao desenvolvimento de produtos realmente saudáveis e circulares.
Quer saber mais?
Para saber mais, você pode fazer o download da versão 4.0 que está em consulta e todos os seus documentos e planilhas complementares nesta página do instituto. Além do documento principal, estão disponíveis as novas listas de substâncias restritas, recomendações de conteúdo reciclado por tipo de produto/material, e uma tabela comparativa entre a versão 3.1 e 4.0 (em inglês).
Quer certificar um produto?
Ainda que a Ideia Circular tenha na metodologia Cradle to Cradle uma de suas maiores inspirações, e use os critérios de certificação como referência para nossos cursos, oficinas e estudos de caso, nós não somos representantes oficiais do Instituto e nem da certificação, e não conduzimos assessorias nesse sentido. Se tiver interesse em certificar um produto brasileiro pelo Padrão de Certificação Cradle to Cradle, você pode procurar a Flock, empresa da nossa co-fundadora Léa Gejer que representa no Brasil o EPEA GmbH, um dos assessores mais antigos e prestigiados da certificação, para orientação sobre esse processo.
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