É com muito prazer que trazemos esta entrevista exclusiva com o fundador da Algramo, José Manuel Moller. A entrevista foi realizada em dezembro de 2019, pela nossa co-fundadora Carla Tennenbaum, logo após o anúncio de que a Algramo tinha sido vencedora do grande prêmio da categoria de Economia Circular do desafio Ocean Plastics Innovation Challenge, da National Geographic, no qual Carla participou como uma das juízas.
Além do destaque nessa categoria, a Algramo também foi contemplada com financiamento da Sky Ocean Ventures, co-organizadora do desafio. E também já tinham sido um dos vencedores do desafio SOLVE, do MIT, com nossa outra co-fundadora, a Léa Gejer, como parte do júri.
É uma honra para a Ideia Circular fazer parte dessa trajetória, que temos acompanhado desde 2017, quando a Algramo nos chamou a atenção como um dos finalistas do desafio de design da OpenIDEO.
Em um universo em que a maioria dos projetos exemplares e estudos de caso mais avançados vêm da Europa em direção à América Latina, é muito inspirador ver uma iniciativa fazendo o caminho oposto. Depois de resultados muito interessantes nas comunidades da periferia de Santiago, Chile, onde a Algramo nasceu, os planos de expansão do José Manuel incluem os Estados Unidos, Europa, Ásia – e, como você vai ver na entrevista, esperamos que em breve o Brasil!
E o mais legal é que, por ser um projeto latino-americano, a Algramo tem uma abordagem que se diferencia bastante das iniciativas circulares de países desenvolvidos. Por exemplo, ela começa focada em questões sociais e econômicas, abordando um problema ligado à renda – o “imposto da pobreza” que as pessoas acabam pagando quando precisam comprar produtos em embalagens menores. A solução que eles desenvolveram – um sistema de compras a granel com embalagens reutilizáveis – traz benefícios ambientais claros, e uma proposta circular com tecnologias inovadoras, que vêm chamando a atenção e contribuindo para o grande sucesso da Algramo até aqui. Mas, pelo próprio DNA do projeto, a dimensão social se mantém e é inseparável dos benefícios ambientais que ele venha a trazer.
Para a Algramo, o sustentável precisa ser mais barato. Em geral, estamos acostumados a pensar produtos sustentáveis como um pouco mais caros que os convencionais, que precisam de um consumidor consciente – e disposto a pagar um pouco a mais por essa escolha. Mas ainda que as pessoas declarem que querem optar por produtos sustentáveis, se tiverem que escolher entre o planeta e o bolso, a maioria menos abastada acaba preferindo fazer seu dinheiro render até o final do mês. Por isso José diz que o sistema foi desenhado para 90% das pessoas, não apenas para “millennials com dinheiro e vegetarianos”.
Confira abaixo a entrevista exclusiva que a Carla fez com José Manuel Moller, em que ele conta do momento atual e dos planos futuros do projeto!
José, eu estava te contando que desde que vocês ganharam na OpenIDEO em 2017 a gente adorou o projeto, ficamos muito entusiasmadas que era um projeto da América Latina. Falamos no blog “Ó, vocês vão ouvir muito falar deles”… E estamos ouvindo, né? Vocês estão em uma trajetória incrível de reconhecimento. Como tem sido isso?
JM: Estamos muito felizes de, primeiro, ter recebido este reconhecimento, esse prêmio. E acreditamos que estamos só começando… Este é um projeto de longo prazo e de um mercado que vai muito além do Chile. Mas estamos muito alegres por todo o apoio que recebemos e agora sim começa o desafio de expandir essa solução para além do Chile, que já entendemos que funciona bem lá, para que possamos testar diferentes mercados.
Então antes de falar disso, conta um pouco da história do projeto. Como vocês começaram?
JM: Sim, Algramo começa quando estava estudando Economia na universidade. Eu e mais três colegas saímos de nossas casas para morar em um bairro popular, um bairro mais pobre. E eu era o responsável por comprar e cozinhar as coisas do dia a dia, no armazém do bairro. Comprando aí me dei conta de que não tínhamos como comprar os formatos maiores, então comprávamos os pequenos, sachês e garrafas pequenas.
Fazendo isso percebi que a gente pagava 40% mais do que as pessoas que tinham dinheiro para comprar uma garrafa grande. E isso é o que chamamos de “imposto sobre a pobreza” (poverty tax), que hoje em dia afeta grande parte da América Latina – todas as pessoas que não têm condições de comprar as embalagens grandes. Então comecei a estudar como resolver esse problema, e aí veio a primeira ideia de ter um dispensador de produtos a granel, em que as pessoas pudessem comprar aos poucos, mas pelo mesmo preço. Ou seja, todos pagam o mesmo preço, como funciona hoje com a gasolina, mas para os alimentos e produtos de primeira necessidade. Para as pessoas poderem comprar o que elas precisam, sem pagar mais caro por isso, e sem poluir.
Então começou como uma preocupação social, ou ambiental, ou os dois? Como foi?
JM: Não, começou como algo 100% social, a partir de um problema de renda, de pobreza. O interessante da Algramo é que o tema social e ambiental estão super amarrados, não se pode separar. Então quando resolvemos um problema social também estamos resolvendo um problema ambiental, que hoje em dia é urgente. E um dos motores que a Algramo tem para escalar é o argumento do meio ambiente.
E como surgiu essa tecnologia que vocês têm, que é incrível, da “packaging-as-a-wallet” – como você fala isso em espanhol?
JM: Embalagens inteligentes?
Legal. Conta um pouquinho sobre isso?
JM: No ano passado decidimos abrir o sistema da Algramo. Porque antes só vendíamos nossos produtos, nossas marcas. Mas a partir do ano passado, como temos uma emergência climática tão grande, e necessidade de ampliar para outros países, decidimos colaborar com outras marcas. E assim apareceram a Unilever, a Nestlé, e agora a Coca-Cola. Para se trabalhar com grandes marcas é necessário outro padrão, outra forma de funcionar. E uma das invenções que criamos foi: como podemos colocar inteligência nas embalagens? Então adicionamos um chip RFID às embalagens, tornando-as inteligentes. Isso significa que as embalagens com esse chip ficam vinculadas ao usuário, e quando são colocadas no dispensador, o sistema reconhece a embalagem e o usuário, e então o pagamento é feito com essa “wallet” – carteira online. Então quando eu compro, ele me diz quanto de plástico foi evitado, e baseado nisso me dá um crédito na própria embalagem, como um prêmio.
A ideia é oferecer o preço mais barato do mercado, e além disso dar um incentivo econômico para que se reutilize a embalagem. Com isso também temos a rastreabilidade do consumo e sabemos quanto desperdício de plástico estamos evitando.
Esse ano a gente ouviu muito falar na LOOP, que é um outro projeto que tá trabalhando com grandes marcas, mas eles fazem isso com um custo grande pro consumidor, um consumidor mais consciente, que quer pagar esse valor. E vocês estão fazendo o contrário, né? Como fica o preço dos produtos?
JM: Exatamente, nossa proposta é que o sustentável tem que ser mais barato. Porque hoje em dia as pessoas se sentem obrigadas a decidir entre o planeta ou o dinheiro, ou chegar ao fim do mês.. E obviamente as pessoas precisam chegar ao final do mês, e acabam deixando de lado a preocupação com o planeta. Acreditamos que com a Algramo podemos ter uma solução que junta essas duas coisas, e foi desenhada para 90% das pessoas… Não só para os millenniums com dinheiro e vegetarianos, mas para qualquer cidadão que hoje em dia declara que se importa com o meio ambiente, mas compra coisas que poluem. Então, como podemos fazer com que se torne mais atrativo comprar algo sustentável? É o que estamos tentando trabalhar com a Algramo.
Então agora você explica pra gente, mais ou menos, como funciona isso?
JM: Então, temos 3 elementos. O primeiro é o “wallet”, a carteira, onde as pessoas podem carregar dinheiro em suas contas. A “wallet” se conecta com o segundo elemento, que é a embalagem. A embalagem tem um chip que permite reconhecer a conta, e essa embalagem é usada nos dispensadores (terceiro elemento). Então quando alguém coloca a embalagem no dispensador, ele a reconhece e diz quanto dinheiro essa pessoa tem, ele dispensa o produto e depois disso pode dizer quanto plástico se poupou. E com base nisso, podemos carregar mais dinheiro como crédito na embalagem.
Então a pessoa não pode perder essa embalagem?
JM: Se perder, ela perde o dinheiro que recebeu de volta.
É um jeito muito inteligente de manter a embalagem em circulação, né?
JM: Exatamente, e outra coisa importante é que, por exemplo, com as sacolas plásticas, as pessoas se esquecem de levá-las ao supermercado. Mas nunca se esquecem de levar a carteira, ou dinheiro.. Então se colocamos dinheiro nas coisas, as pessoas vão se lembrar mais facilmente.
E tem a ideia dos triciclos também né? Isso é com a Unilever que vocês estão desenvolvendo?
JM: Sim, é o primeiro piloto. Esses dispensadores podem estar de duas maneiras. Podem estar em um triciclos, que é um carro, com dois dispensadores, um motorista, que então pode ser chamado pelo celular, pelo aplicativo, e o triciclo chega até a casa e pode-se fazer a recarga – esta é uma opção. E a outra é no supermercado, que pode ser um “Walmart”, por exemplo, onde está o dispensador. Então pode-se ir lá ou receber o triciclo.
Muito bom, parabéns! É uma inspiração enorme, um orgulho muito grande também de ver projetos da América Latina nessas competições.
JM: Somos os únicos latinos.
Sim. Muito bom! Daqui a pouco não vai ser, vai ter também projetos brasileiros aí, nesse espaço.
JM: Muito bem! Oxalá que tenha mesmo!
Conta um pouco dos prêmios que você já ganhou. Esse é um de vários que vocês ganharam nos últimos anos, não?
JM: Sim, este ano (2019) tivemos dois reconhecimentos importantes: Um do MIT, que é o MIT Solve, que é a parte de financiamento, vão nos apoiar com a fase de desenvolvimento tecnológico do Algramo. E o segundo é este do National Geografic que também vem para nos apoiar em comunicar – o que nos interessa é poder comunicar esta nova forma de comprar, porque é preciso educar o novo consumidor em como eles têm que voltar a comprar. E o que vem mais pra frente é que, no próximo ano vamos fazer um piloto aqui, nos Estados Unidos, pela primeira vez, fora do Chile com esta nova tecnologia. E depois vem uma curva muito agressiva de desenvolvimento de tecnologia, de software e hardware, mas também começando a explorar novos mercados. Porque obviamente o Chile é muito pequeno, produz 0.25% das emissões mundiais e necessitamos estar nos mercados mais relevantes. Um dado que é super importante é que os 10% mais ricos geram 50% da poluição, então as pessoas que mais poluem são as pessoas dos Estados Unidos e da Europa – que são as pessoas com mais dinheiro que podem poluir mais.
Então, a Algramo tem duas linhas que são super claras, uma é a social e a outra é a ambiental. Então isso pode funcionar no Brasil, por ambos motivos – porque tem gente que paga o imposto sobre a pobreza, como em toda a América Latina. Mas também pode funcionar na Europa, onde o consumidor é mais consciente ou onde a legislação é mais exigente, e estão forçando as empresas a serem mais conscientes. E isso não está acontecendo na América Latina ainda, está acontecendo na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos. Então, a Algramo tem muitas oportunidades porque, seja pelo lado social ou ambiental, ela pode funcionar em diferentes lugares…
Então queremos testar em diferentes tipos de mercados. Já estamos no Chile, acreditamos que na América Latina poderia funcionar, vamos testar nos Estados Unidos e depois na Europa. Validando aí se replica em cada setor. E o sonho é chegar na Índia, ou na Indonésia, onde o mercado é muito maior, onde as pessoas compram tudo em sachês, onde se polui mais e além disso as pessoas são mais pobres.
E o Brasil? Não está nos planos?
JM: O Brasil? Sim! Hoje em dia, com produtos de higiene o Brasil representa 50% da América Latina, em volume. Da maneira que operamos, nós trabalhamos com pessoas locais. Eu não vou começar a Algramo Brasil. Tem que ser os próprios brasileiros, porque a cultura é diferente, a lógica é diferente, os tempos são diferentes. Então estamos desenhando isso como uma espécie de franquia, onde, se há por exemplo uma empresa de logística ou varejista brasileiro que gostaria de implementar a Algramo, vamos poder oferecer essa licença e assim eles mesmos podem operar. Mas tem que ser feito por pessoas locais, porque se não leva muito tempo, e muitas soluções fracassam porque não se adaptam à cultura.
Então acreditamos que o Brasil é sem dúvida o mercado mais relevante da América Latina, mas tem que ser com equipes brasileiras. E é para isso que estamos trabalhando, para termos tudo organizado para poder passar para alguém que vai poder implementar localmente.
Então se tiver alguém assistindo, interessado – brasileiro – em levar a Algramo pro Brasil, vocês estão abertos, é isso?
JM: Sim, sim! Sabemos que o Brasil é um mercado muito muito importante. E hoje não tenho tudo preparado para poder fazer a “Algramo Brasil”, mas para o final do próximo ano vamos estar desenhados para isso. Como pensamos a Algramo? Como uma empresa muito leve, que entrega hardware, software, marketing e as alianças com as marcas. Mas as operações e equipe são aportadas por cada país. Então, de toda a maneira tem que haver ou um operador logístico, que já tem experiência com distribuição, ou com um varejista ou supermercado.
E a legislação? Você precisa ter algum tipo de legislação com essa questão do granel, do refil, que eu não sei se o Brasil tem… Como é que é isso?
JM: Não, não. Não há regulação. A regulação mais exigente é a da Unilever, ou a das marcas. Porque não há regulação? Primeiro porque os produtos de limpeza, não são de consumo alimentar, então não há problema. E os alimentos que vendemos são fervidos, são para ser cozidos, então não é de consumo imediato, não há problema. Começamos com os produtos mais fáceis e depois, provavelmente vamos entrar em categorias mais complexas, porém hoje em dia não há problema de regulamentação.
E maiores desafio que você imagina ai?
JM: Hm, um montão. O primeiro, um dos grandes desafios é, primeiro poder convidar os supermercados para fazer parte deste modelo. Porque entre marcas e supermercados se briga muito, e precisamos que haja colaboração para que isso se escale, este é um dos primeiros desafios. O segundo, como mencionei antes, é a mudança de hábitos, para que as pessoas queiram mudar, que percebam que a embalagem tem um chip e que tem um valor, e isso toma tempo… Então creio que esse é um desafio muito grande, poder se comunicar da maneira certa. E eu diria que o terceiro é buscar por equipes locais, por exemplo, no Brasil para que exista um parceiro local muito bom. E para se escolher bem é super complexo, porque no Brasil vão existir milhares de oportunidades, mas como escolher a pessoa certa? Eu acredito que isso também seja um desafio muito importante.
E alguma mensagem? O nosso público tem muitos empreendedores, empresas, consultores – pessoas que tão trabalhando por isso no brasil, ainda com condições não tão favoráveis. O que você diria dessa sua trajetória até aqui?
JM: O primeiro é que acredito que estamos em um estado de emergência, sobretudo a crise ambiental – bom, o Brasil particularmente tem a Amazônia, que é um reflexo de que hoje em dia estamos com problemas. Claramente os governos não estão dando conta, não estão cuidando do meio ambiente. E corresponde às gerações mais jovens começarem a questionar, e também estar, como dizemos na Algramo: “estar no protesto mas também estar na proposta”.
Ou seja, chegar com algo para que se resolva, E eu acredito que isso depende de que a gente se mexa – não vai se resolver se estamos sentados em casa. É necessário existir um ativismo, que pode ser através do empreendimento, mas também pode ser através da política, ou através da educação. E eu acho que falta uma geração que mova a barreira do possível, entendendo que temos 10 anos para resolver esse problema e estamos muito longe disso ainda. Então, mais que a Algramo, precisamos de milhares de “Algramos”, precisamos de muita gente envolvida. E eu gostaria de fazer esse chamado para que as pessoas participem, para que sejamos críticos e questionemos as coisas, e oxalá tentemos fazer diferente.
Quer saber mais sobre a história do projeto?
Confira abaixo um pequeno vídeo que traduzimos em 2017, mostrando como funciona o sistema da Algramo nas periferias de Santiago, no Chile.